Pode parecer absurdo um cristão falar isso, mas é verdade: Deus não existe, mas ainda sim, eu creio em Deus. Mas como assim?
Bem, quando se fala que Deus criou todas as coisas, estamos dizendo que Deus criou o Ser, portanto, criou o mundo da existência. Isso significa que a modalidade de “existência” de Deus está além da existência. Logo, não se pode afirmar que Deus existe no sentido literal do termo. Para que se afirme a existência de Deus é preciso esticar o significado do próprio verbo existir a fim de abarcar a presença de Deus. Dito de outra forma, é um uso figurativo do termo. Deus não existe, Deus criou o existir. Ele “existia” antes da existência. E isso vale para qualquer conversa sobre o transcendente, mas essa explanação fica para outra hora.
Pior ainda quando se fala das “provas” da existência de Deus. Se a própria compreensão da "existência" de Deus é problemática por si, que dirá o desejo de provas. Nem a própria existência é passível de provas! Muito pelo contrário, são as provas que primeiro precisam existir. Pedir isso é como pedir que a consequência da consequência prove a existência da causa. A ordem correta das coisas é: primeiro Deus, depois a existência e, por fim, depois de muito arroz com feijão, as provas.
É praticamente impossível falar de Deus sem cometer “gafes linguísticas”. Mas graças a nossa capacidade de compreender além das palavras é que conseguimos compreender alguma coisa. Para se tomar um pouquinho de consciência do que vem a ‘ser’ Deus (expressão essa que já ‘deu ruim’ porque Deus criou o Ser e, por conseguinte o transcende), é necessário compreender que se trata do Senhor do Mundo e de tudo que existe, a Causa das Causas, o Verbo dos Verbos. Logo, nada mais se compara a Ele e nem sequer chega aos Seus pés. É a Ordem das Ordens e a Unidade das Unidades.
Nessa perspectiva, cabe frisar que antes do Caos existia a Ordem. E isso não é tão difícil de compreender. Faça o seguinte exercício: tente imaginar o Caos primordial, anterior a existência ou, se preferir, anterior ao "big bang". Imaginou? Errado. Ali havia a ordem. Onde? Primeiramente, na mente do observador. A desordem é uma das possibilidades da ordem, vassala, e não a primeira. Não faz sentido falar em ordem e desordem sem a presença do observador, e o observador é expressão da ordem. Logo, ou não havia nem um, nem outro, ou havia a ordem. O caos puro, jamais.
Na primeira hipótese, não havendo nem uma, nem a outra, o que há são todas as possibilidades, dito de outra forma, a Onipotência. E o leitor há de concordar que há uma certa equivalência na natureza das possibilidades de forma sermos capazes de afirmar a unidade do conjunto das possibilidades. Sem falar que o próprio caos também é passível da mesma análise. Ao falarmos sobre o Caos, estamos nos referido a algo. E se estamos nos referindo a algo, significa que esse algo tem uma unidade reconhecível, portanto, tem ordem. A Ordem existe sem o Caos, mas o Caos não existe sem alguma ordem que mantenha sua natureza estável o suficiente de forma que possamos apreendê-lo.
Creio que uma outra possibilidade quanto a conceituação do Caos remeteria a um objeto impossível de ser apreendido cuja natureza seria tão caótica que não seria possível afirmar sua Unidade. Se assim fosse, o conceito seria gerado a partir da negação daquilo que é Ordem, a fim de delimitar aquilo que não é. Portanto, quanto mais se força para se afirmar a existência de um Caos anterior, mais se afirma a necessidade da Ordem para que o próprio conceito de Caos possa ser delimitado.
Em hieróglifos egípcios, a palavra que significa a Ordem Cósmica Primordial começa com o desenho de uma foice , simbolizando o corte que é feito para a delimitação da unidade (que é o mesmo que a criação) do Demiurgo Criador [na Ocasião Primordial, pois trata-se de um símbolo que expressa uma transformação, e não um objeto estático]. Que, na cosmogonia egípcia, inverte os momentos da criação e parte do Caos para a Ordem. Sem perceber que a própria tentativa de ordenar a Criação já pressupõe uma ordem anterior cuja apreensão o estudioso dedica seus esforços.
Mas o que quero que o leitor observe atentamente é o poder do símbolo e as pistas que ele dá. A foice, o corte. E é assim que se delimita a Unidade. Recortando de um todo unificado e inabarcável [de natureza também unitária] algo que pode ser chamado de “Um” e, só assim, adquirir unidade e existência. É como se o ato da Criação Divina fosse Deus amputando seu próprio braço para que as coisas tivessem existência.
Todas as coisas existem porque Deus recuou da sua condição [e se ocultou], cortou seus próprios membros, para que as coisas tivessem espaço para existir e ter unidade. Mais fundo ainda foi o corte que propiciou a criação do ser humano, pois a ele deu identidade, ou seja, coparticipação da singularidade Divina e Criadora. É isso que significa o amor de Deus.E isso tem validade tanto simbólica, quanto lógica. O corte delimita e distingue algo de tudo o mais, dando-lhe unidade, que é o mesmo que saber onde começa e onde termina algo. É, portanto, nas periferias do Ser que acontece o ato divino da criação com o sacrifício do amor de Deus. Todo simbolismo cristão perpassa nas periferias, nos mais humildes, nos excluídos, nos pobres, numa planetinha de uma galaxiazinha, dentro de um sisteminha solar, onde o Messias nasceu numa cidadezinha, e os profetas nasceram nas tribozinhas das mais fraquinhas e um povinho, sem cidade, sem rei, morando em tendas conquistou povos enormes morando em cidades fortificadas. Isso se repete em todas as instâncias do simbolismo judaico-cristão.
Unir-se a Deus é andar em direção a essa periferia onde o “corte do Ser” acontece. E não ao centro da nossa própria Unidade, pois isso representaria o ápice do egocentrismo. E ali não tem nada! É como o calcário do centro de uma estátua: nunca foi tocado. E é indiferente se a estátua foi esculpida ou se permanece em seu estado bruto. O que é tocado são as bordas. É ali que Deus está realizando seu sacrifício, dia após dia, noite após noite. É para lá que devemos caminhar com o nosso espírito, até que um dia, de tanto nos aproximar, o próprio ato divino da criação, que se faz a todo o tempo, corte o íntimo do nosso ser e nos coloque junto Dele.Até aí já temos a ordem primordial, a unidade e a onipotência. Falta a consciência.
A consciência de Deus não se “prova” pela afirmação, mas pela negação do contrário, pois não se pode abstrair da Criação como uma relação entre sujeito e objeto, cuja análise também fica para outro momento, e não se pode negar que ela é algo antinatural. Nunca houve a Criação, até existir. Bastou que o Cosmos fosse criado uma única vez para que tudo o mais acontecesse por transformações de matéria. Antes disso, nunca houve outro cosmos, só esse. Se tivesse havido outro cosmos, este atual teria sido fruto de transformações do primeiro e o ato da criação teria ocorrido no primeiro, portanto não faz sentido cogitar isso, pois no final das contas, é um cosmos só.Logo, a acidentalidade do ato da criação só pode ser explicada por um ato de vontade, por uma intervenção divina criadora. O Cosmos não era para existir! E, se há um ato de vontade, há um ato de consciência. Uma consciência que contemplou todos os atos da criação e que, necessariamente, continua criando, pois, como o cosmos é paciente e não agente de sua criação, ele continua dependendo da "pressão" divina, segurando firme para manter a consistência da natureza da existência que é artificial. Qualquer explicação que tenha como base a afirmação da ocasionalidade ou a coincidência, não é explicação, e sim, descrição, pois coincidência significa que dois ou mais fatores coincidiram naquele momento, sem a apresentação das razões para tal. E a afirmar da inexistência de razões retornaria à discussão sobre o Caos primordial, pois se assim fosse, seria uma disrupção ilógica do processo que levaria o estudioso a uma loucura incompatível com sua própria modalidade de existência física e individual.
Percebendo isso é que se explica porque a vida é tão turbulenta e cheia de sofrimentos, e os nossos pensamentos tão confusos e evanescentes, porque as coisas estão sempre tendendo a desordem, ao apodrecimento, à ferrugem e à erosão. A sensação é que o nosso ser quer se desmanchar e se desmantelar. E é isso mesmo! A existência é submetida a entropia, aquela força que desmancha e corrói tudo. É a mão de Deus que segura firme para que o cosmos não acabe, pelo menos não enquanto a hora certa não chegar. Até lá, zelemos pela nossa identidade e não pela nossa unidade. Identidade que se manifesta enquanto se exerce a vocação, ou seja, os planos de Deus para a nossa vida. E, conscientes disso, paremos de tentar controlar o Ser a partir da busca da nossa unidade interior, pois a única função dela é possibilitar a nossa existência, mas quem a sustenta é Deus. Pois a artificialidade do mundo nos mostra o quão artificial é a nossa unidade. E que a nossa verdadeira unidade é misteriosa, tão misteriosa que nem sei se dá para usar esse termo em seu sentido literal.
Texto inspirado nas aulas do Curso de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho
Deus não existe
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