Deus não existe

Por Antonio da Silva Mamede - Foto: Divulgação

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Pode parecer absurdo um cristão falar isso, mas é verdade: Deus não existe, mas ainda sim, eu creio em Deus. Mas como assim?

Bem, quando se fala que Deus criou todas as coisas, estamos dizendo que Deus criou o Ser, portanto, criou o mundo da existência. Isso significa que a modalidade de “existência” de Deus está além da existência. Logo, não se pode afirmar que Deus existe no sentido literal do termo. Para que se afirme a existência de Deus é preciso esticar o significado do próprio verbo existir a fim de abarcar a presença de Deus. Dito de outra forma, é um uso figurativo do termo. Deus não existe, Deus criou o existir. Ele “existia” antes da existência. E isso vale para qualquer conversa sobre o transcendente, mas essa explanação fica para outra hora.

Pior ainda quando se fala das “provas” da existência de Deus. Se a própria compreensão da "existência" de Deus é problemática por si, que dirá o desejo de provas. Nem a própria existência é passível de provas! Muito pelo contrário, são as provas que primeiro precisam existir. Pedir isso é como pedir que a consequência da consequência prove a existência da causa. A ordem correta das coisas é: primeiro Deus, depois a existência e, por fim, depois de muito arroz com feijão, as provas.

É praticamente impossível falar de Deus sem cometer “gafes linguísticas”. Mas graças a nossa capacidade de compreender além das palavras é que conseguimos compreender alguma coisa. Para se tomar um pouquinho de consciência do que vem a ‘ser’ Deus (expressão essa que já ‘deu ruim’ porque Deus criou o Ser e, por conseguinte o transcende), é necessário compreender que se trata do Senhor do Mundo e de tudo que existe, a Causa das Causas, o Verbo dos Verbos. Logo, nada mais se compara a Ele e nem sequer chega aos Seus pés. É a Ordem das Ordens e a Unidade das Unidades.

Nessa perspectiva, cabe frisar que antes do Caos existia a Ordem. E isso não é tão difícil de compreender. Faça o seguinte exercício: tente imaginar o Caos primordial, anterior a existência ou, se preferir, anterior ao "big bang". Imaginou? Errado. Ali havia a ordem. Onde? Primeiramente, na mente do observador. A desordem é uma das possibilidades da ordem, vassala, e não a primeira. Não faz sentido falar em ordem e desordem sem a presença do observador, e o observador é expressão da ordem. Logo, ou não havia nem um, nem outro, ou havia a ordem. O caos puro, jamais.

Na primeira hipótese, não havendo nem uma, nem a outra, o que há são todas as possibilidades, dito de outra forma, a Onipotência. E o leitor há de concordar que há uma certa equivalência na natureza das possibilidades de forma sermos capazes de afirmar a unidade do conjunto das possibilidades. Sem falar que o próprio caos também é passível da mesma análise. Ao falarmos sobre o Caos, estamos nos referido a algo. E se estamos nos referindo a algo, significa que esse algo tem uma unidade reconhecível, portanto, tem ordem. A Ordem existe sem o Caos, mas o Caos não existe sem alguma ordem que mantenha sua natureza estável o suficiente de forma que possamos apreendê-lo.

Creio que uma outra possibilidade quanto a conceituação do Caos remeteria a um objeto impossível de ser apreendido cuja natureza seria tão caótica que não seria possível afirmar sua Unidade. Se assim fosse, o conceito seria gerado a partir da negação daquilo que é Ordem, a fim de delimitar aquilo que não é. Portanto, quanto mais se força para se afirmar a existência de um Caos anterior, mais se afirma a necessidade da Ordem para que o próprio conceito de Caos possa ser delimitado.

Em hieróglifos egípcios, a palavra que significa a Ordem Cósmica Primordial começa com o desenho de uma foice , simbolizando o corte que é feito para a delimitação da unidade (que é o mesmo que a criação) do Demiurgo Criador [na Ocasião Primordial, pois trata-se de um símbolo que expressa uma transformação, e não um objeto estático]. Que, na cosmogonia egípcia, inverte os momentos da criação e parte do Caos para a Ordem. Sem perceber que a própria tentativa de ordenar a Criação já pressupõe uma ordem anterior cuja apreensão o estudioso dedica seus esforços.

Mas o que quero que o leitor observe atentamente é o poder do símbolo e as pistas que ele dá. A foice, o corte. E é assim que se delimita a Unidade. Recortando de um todo unificado e inabarcável [de natureza também unitária] algo que pode ser chamado de “Um” e, só assim, adquirir unidade e existência. É como se o ato da Criação Divina fosse Deus amputando seu próprio braço para que as coisas tivessem existência.
Todas as coisas existem porque Deus recuou da sua condição [e se ocultou], cortou seus próprios membros, para que as coisas tivessem espaço para existir e ter unidade. Mais fundo ainda foi o corte que propiciou a criação do ser humano, pois a ele deu identidade, ou seja, coparticipação da singularidade Divina e Criadora. É isso que significa o amor de Deus.

E isso tem validade tanto simbólica, quanto lógica. O corte delimita e distingue algo de tudo o mais, dando-lhe unidade, que é o mesmo que saber onde começa e onde termina algo. É, portanto, nas periferias do Ser que acontece o ato divino da criação com o sacrifício do amor de Deus. Todo simbolismo cristão perpassa nas periferias, nos mais humildes, nos excluídos, nos pobres, numa planetinha de uma galaxiazinha, dentro de um sisteminha solar, onde o Messias nasceu numa cidadezinha, e os profetas nasceram nas tribozinhas das mais fraquinhas e um povinho, sem cidade, sem rei, morando em tendas conquistou povos enormes morando em cidades fortificadas. Isso se repete em todas as instâncias do simbolismo judaico-cristão.
Unir-se a Deus é andar em direção a essa periferia onde o “corte do Ser” acontece. E não ao centro da nossa própria Unidade, pois isso representaria o ápice do egocentrismo. E ali não tem nada! É como o calcário do centro de uma estátua: nunca foi tocado. E é indiferente se a estátua foi esculpida ou se permanece em seu estado bruto. O que é tocado são as bordas. É ali que Deus está realizando seu sacrifício, dia após dia, noite após noite. É para lá que devemos caminhar com o nosso espírito, até que um dia, de tanto nos aproximar, o próprio ato divino da criação, que se faz a todo o tempo, corte o íntimo do nosso ser e nos coloque junto Dele.

Até aí já temos a ordem primordial, a unidade e a onipotência. Falta a consciência.
A consciência de Deus não se “prova” pela afirmação, mas pela negação do contrário, pois não se pode abstrair da Criação como uma relação entre sujeito e objeto, cuja análise também fica para outro momento, e não se pode negar que ela é algo antinatural. Nunca houve a Criação, até existir. Bastou que o Cosmos fosse criado uma única vez para que tudo o mais acontecesse por transformações de matéria. Antes disso, nunca houve outro cosmos, só esse. Se tivesse havido outro cosmos, este atual teria sido fruto de transformações do primeiro e o ato da criação teria ocorrido no primeiro, portanto não faz sentido cogitar isso, pois no final das contas, é um cosmos só.

Logo, a acidentalidade do ato da criação só pode ser explicada por um ato de vontade, por uma intervenção divina criadora. O Cosmos não era para existir! E, se há um ato de vontade, há um ato de consciência. Uma consciência que contemplou todos os atos da criação e que, necessariamente, continua criando, pois, como o cosmos é paciente e não agente de sua criação, ele continua dependendo da "pressão" divina, segurando firme para manter a consistência da natureza da existência que é artificial. Qualquer explicação que tenha como base a afirmação da ocasionalidade ou a coincidência, não é explicação, e sim, descrição, pois coincidência significa que dois ou mais fatores coincidiram naquele momento, sem a apresentação das razões para tal. E a afirmar da inexistência de razões retornaria à discussão sobre o Caos primordial, pois se assim fosse, seria uma disrupção ilógica do processo que levaria o estudioso a uma loucura incompatível com sua própria modalidade de existência física e individual.

Percebendo isso é que se explica porque a vida é tão turbulenta e cheia de sofrimentos, e os nossos pensamentos tão confusos e evanescentes, porque as coisas estão sempre tendendo a desordem, ao apodrecimento, à ferrugem e à erosão. A sensação é que o nosso ser quer se desmanchar e se desmantelar. E é isso mesmo! A existência é submetida a entropia, aquela força que desmancha e corrói tudo. É a mão de Deus que segura firme para que o cosmos não acabe, pelo menos não enquanto a hora certa não chegar. Até lá, zelemos pela nossa identidade e não pela nossa unidade. Identidade que se manifesta enquanto se exerce a vocação, ou seja, os planos de Deus para a nossa vida. E, conscientes disso, paremos de tentar controlar o Ser a partir da busca da nossa unidade interior, pois a única função dela é possibilitar a nossa existência, mas quem a sustenta é Deus. Pois a artificialidade do mundo nos mostra o quão artificial é a nossa unidade. E que a nossa verdadeira unidade é misteriosa, tão misteriosa que nem sei se dá para usar esse termo em seu sentido literal.

Texto inspirado nas aulas do Curso de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho