Suprema insensatez

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Em seu magistral livro a Marcha da Insensatez, a historiadora americana Barbara Tuchman tratou com singular objetividade o tema do desgoverno, ou seja, "... Por que os homens com poder de decisão política tão frequentemente agem de forma contrária àquela apontada pela razão e que os próprios interesses em jogo sugerem?". Segundo ela, o desgoverno apresenta quatro tipos, às vezes combinados: tirania ou opressão, ambição desmedida, incompetência ou decadência e insensatez ou obstinação. Ao que parece, a insensatez, sintoma de desgoverno mais comum nas democracias modernas, porque pode atingir indistintamente qualquer esfera de um governo, é o mal que hoje vem assolando o nosso Supremo Tribunal Federal (STF).

A questão tem sua origem em procedimento corriqueiro - e do próprio ofício - que toda a Suprema Corte sempre enfrenta em algum momento: a capacidade de fazer cumprir as suas decisões. Na verdade, nenhum dos Supremos Tribunais tem poder de coerção, e o único instrumento que dispõem para tanto é a chamada legitimidade judicial. Neste sentido, é imprescindível que os Supremos Tribunais enquadrem suas capacidades de decisão pelo que está estabelecido na Constituição e - muito importante - respeitem a pedra angular da doutrina democrática, que é a divisão entre os três poderes.

Considerando esses aspectos fundamentais, e que devem orientar as decisões de um Supremo Tribunal em um estado democrático de direito, constatamos o absurdo que tem sido o comportamento da nossa Corte maior nos últimos anos. Ostensivamente, o STF tem deixado de lado o conceito de divisão e prerrogativas entre os poderes, tem seguidamente "interpretado" a Constituição e em várias ocasiões mostrou não ter qualquer remorso por adotar posicionamentos identificados com a tese da supremacia judicial.

O fato é que estão se tornando comuns as decisões do STF na direção do aumento das suas próprias prerrogativas para além do texto constitucional, em relação aos poderes eleitos. Essa tendência parece se confirmar quando observamos algumas dessas decisões legitimadas - se é possível classificá-las assim - pelo STF, nos últimos anos: a derrubada da cláusula de barreira; a autorização de prisão em flagrante de um senador da República, por causa de uma gravação; a prisão de um banqueiro, sem que qualquer prova tenha sido produzida contra ele; a reversão do texto constitucional sobre prisão preventiva, a despeito de capítulo específico da Constituição sobre garantias individuais; a remoção do presidente do Senado por liminar de um ministro; a procrastinação da decisão sobre prisão decorrente de sentença emitida em segunda instância. Em 2016, foi com espanto que o Brasil assistiu um ministro do STF, em pleno Congresso Nacional, em evidente desrespeito à Constituição, conseguir o "fatiamento" do crime de responsabilidade fiscal, chancelando uma votação esdrúxula que conseguiu evitar a perda da função pública da então presidente da República.

No fim do último mês de março, um ministro instaurou um inquérito para investigar injúrias e ameaças virtuais contra os próprios ministros do STF. Nomeado relator do inquérito, um outro ministro expediu mandados de busca e apreensão contra sete cidadãos e determinou o bloqueio das suas redes sociais. Também ordenou que uma revista retirasse do ar uma reportagem que citava um dos ministros, mencionado em um depoimento no âmbito da Operação Lava-Jato. O presidente do Superior Tribunal, faz poucas semanas, após surgirem várias críticas sobre atitudes consideradas inadequadas dos membros do STF, ameaçou abrir um inquérito para apurar possíveis crimes de injúria e difamação.

Como se não fosse bastante, têm sido comuns e estão registrados inclusive nas mídias sociais, ataques virulentos de ministros do STF ao Ministério Público Federal e a alguns de seus integrantes, em linguagem chula e totalmente imprópria para um Juiz da Corte Suprema do País. Os próprios membros do Judiciário têm questionado essas atitudes do STF. Em documento oficial recente, a Procuradora Geral da República afirmou que as decisões de dois dos ministros do STF se configuram "afronta" a princípios do ordenamento jurídico, ao excluir o Ministério Público do papel de promotor de ações penais e ao concentrar todas as etapas do processo na figura do juiz.

Na verdade, todas essas atitudes parecem simplesmente apontar em uma única direção: o STF deixou de se pautar pelo texto constitucional e nesse momento representa a vontade política de onze indivíduos. E o mal já está feito. Hoje, o Supremo Tribunal Federal está com a imagem arranhada, assim como a isenção de seus ministros está sendo questionada, ainda que tenham demonstrado bom senso em certas ocasiões.

Por enquanto, a única reação contra essa evidente indisciplina democrática tem sido do Senado Federal, questionando em alguns casos a validade ou legitimidade das decisões do STF. Mas, os grandes estimuladores da insensatez - o poder e o abandono da razão - parecem ter cegado nossos magistrados maiores, que persistem obstinadamente em um comportamento temerário, pouco transparente, discutível constitucionalmente e totalmente insensível ao clamor público.

Agora, a preocupação maior é não só evitar um enfrentamento aberto entre poderes e instituições da República, o que várias vezes pareceu iminente nos últimos meses, mas também recuperar a credibilidade da Corte e dos seus magistrados, condições essenciais para a manutenção da segurança jurídica do País. Não se iludam os senhores juízes. Toda a vossa legitimidade se assenta no texto constitucional, e no respeito à divisão e equilíbrio entre os poderes. Ao menosprezar esse entendimento, Vossas Excelências são apenas onze cidadãos comuns, e a sociedade brasileira já têm consciência disso.