A dignidade humana em primeiro lugar

Fábio Nogueira é secretário-geral adjunto da OAB-RJ - Foto: Divulgação

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O ataque homofóbico contra a influenciadora digital Karol Eller na orla da Barra da Tijuca no domingo passado mostra como ainda estamos longe de respeitar os direitos humanos, aqui no Brasil e no mundo como um todo. Especialmente porque a agressão aconteceu justamente ao fim da semana em que se comemorou os 71 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento proclamado em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Os 30 artigos da DUDH são um libelo em defesa da dignidade humana em todos seus aspectos: direito à moradia, trabalho, saúde, liberdade, educação, expressão, defesa e tantos outros. O Artigo 1º já antecipa tudo o que virá em seguida e é claro: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade."

As marcas que desfiguram o rosto de Karol Eller são um aviso do quanto precisamos lembrar, e praticar, esses 30 artigos a cada dia. Homofobia, racismo, xenofobia, genocídio, crimes de guerra, tudo isso atenta contra os direitos humanos e espelham o noticiário do nosso planeta rotineiramente. E fazem regredir os ganhos conquistados pela DUDH nestes 71 anos. Ganhos que perpassam por Constituições de inúmeros países - na Constituição brasileira de 1946, por exemplo, os direitos fundamentais já eram garantidos, mas é na Carta de 1988 que se proclama a "prevalência dos direitos humanos"—, mas são relegados, também em muitas nações, a um segundo plano perigoso para cada habitante e para a humanidade de forma geral.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi o basta da ONU às atrocidades cometidas nas duas guerras mundiais, mas seu alcance vai muito além. Seu texto assegura, para qualquer ser humano, em qualquer país e sob quaisquer circunstâncias, condições mínimas de sobrevivência e crescimento em ambiente de respeito e paz, igualdade e liberdade, como bem salienta a própria Organização das Nações Unidas. A declaração é o documento mais traduzido no mundo — já alcança 500 idiomas e dialetos.

A DUDH inspirou vários outros documentos e tratados internacionais que ampliaram, ao longo dos anos, o conjunto do que se conhece como direitos humanos. Exemplos são a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006).

Vale lembrar que as mulheres - vítimas cotidianas de homicídio e de violência em todo o mundo - tiveram papel de destaque na elaboração deste estatuto. Só para citar uma, a ex-primeira-dama americana Eleanor Roosevelt presidiu o comitê de redação. Por isso, o documento está livre de linguagem sexista, quase sempre se referindo a "todos" ou "ninguém" nos 30 artigos.

Adotada em uma perspectiva internacionalista e multilateral, a DUDH completa mais de sete décadas sob o ressurgimento de tendências políticas e culturais que renegam os direitos humanos em várias partes do globo. Há um crescimento enorme do populismo e do extremismo, o que dificulta a paz e o exercício dos direitos humanos universais e se contrapõe ao princípio maior do documento. E esse princípio, como bem salientou o representante francês na comissão que redigiu a declaração, Renê Cassin, é que a paz internacional só seria possível se os direitos humanos fossem igualmente respeitados em toda parte.

Direitos humanos, ao contrário do que muitos pensam, não são direitos de bandidos. Recomendo a leitura da DUDH. É um texto enxuto e direto e interessa a todos. Ali se garante, além dos que já citamos, também, e em primeiro lugar, o direito à vida, a um tratamento digno, à proteção legal e um julgamento justo, à privacidade, a ir e vir, ao asilo, à nacionalidade, à opinião e expressão, à reunião, ao serviço público, ao voto, à segurança social e física, ao trabalho, ao emprego e a uma remuneração digna, ao repouso e ao lazer, a um padrão de vida de promova saúde e bem-estar, à cultura.

Karol Eller e a vereadora Marielle Franco - vítima de um assassinato até hoje não resolvido - são a face visível no Brasil de como ainda estamos longe de praticar tudo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos visa proteger. Ainda temos casos de trabalho escravo, ainda temos milhões de desempregados e sem-tetos, ainda carecemos de serviços públicos dignos para todos. Temos muitas deficiências a superar. Temos, portanto, muitos motivos para abraçar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E a usar seus 30 artigos como uma bandeira para conseguirmos ser, cada vez mais, um país mais justo e democrático.