O individualismo nosso de cada dia

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 Certa vez, uma amiga professora me contou uma história intrigante: ela estava na Finlândia, para dar uma palestra em uma universidade. O professor que a convidou foi buscá-la de carro no hotel bem cedo. Quando chegaram, havia um amplo estacionamento, praticamente vazio àquela hora da manhã. O professor, que guiava o carro, estacionou na última vaga, a mais distante possível do prédio em que ocorreria a atividade. Ela, surpresa, perguntou porque ele não havia parado mais próximo, uma vez que havia diversas vagas ao lado do campus. Eis que em sua resposta veio uma aula de civilização: “Nós chegamos cedo, por isso podemos parar mais longe e caminhar. Deixamos as vagas mais próximas para aqueles que estão atrasados, assim podem chegar em sala a tempo”.

Acho que tive o mesmo impacto, ao ouvir dela essa história, que ela teve ao receber a resposta do professor finlandês. Somente quando presenciamos situações inimagináveis como essa é que nos damos conta do tamanho do individualismo no qual estamos imersos em nosso cotidiano. Roberto DaMatta já disse, há mais de trinta anos, que o Brasil é o país do “Você sabe com quem está falando?”. Está enraizado na gente o exercício do pequeno poder, o tal do jeitinho, a malandragem... temos um pouco de João Grilo, de Pedro Malasartes. É o excesso dessa tal criatividade do viver, aquela que nos dá leveza diante das adversidades, que também nos tira o senso do bem comum.

Temos que combater com unhas e dentes essa visão de homem cordial, guiado pelo estômago, pelo bolso e pela genitália. Essa imagem exportada do malandro carioca, do baiano indolente, do índio preguiçoso, da mulher objeto são os piores legados simbólicos da colonização. A partir deles, entendemos que a escravidão, de fato, ainda não acabou, que o patriarcado continua vivo e atuante, que a dominação cultural se tornou quase um traço genético. E esse legado de combate nas trincheiras das escolas. A educação deve servir à emancipação.

Mas emancipar-se sozinho, de nada serve. Emancipar-se é um ato coletivo, conjunto, feito em rede, através exemplos. A emancipação começa quando respeitamos as filas, quando pensamos no próximo ao usar um banheiro público, quando economizamos a luz mesmo que não seja a gente a pagar a conta, quando pedimos silêncio em respeito a terceiros. Emancipação é algo que contagia, que começa pequeno e toma as ruas. O senso de coletividade ainda é um artigo de luxo no Brasil. Mas não pode ser. O começo de tudo é agir em benefício dos outros sem esperar nada em troca. Um dia, quem sabe, a recompensa deve chegar. Mesmo que seja para nossos filhos ou netos.