Ouvir o mar

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Acender uma luz, tornar diferente um encontro, deter-se de repente para escutar um pássaro, um som, uma música. São pequenas epifanias que traduzem intensamente a vida e retraduzem toda a espiritualidade. 

As espiritualidades precisam de janelas abertas, senão rapidamente tendem a se desenvolver num casulo, longe da aragem do espírito. Precisam de lufadas de deslumbramento que lembrem: “Agradeça a dança luminosa do mundo”, “Não desista da luz”, “É quando você dá a vida que ela se torna sua”.

As espiritualidades precisam mais de ouvidos atentos do que de bocas falantes. Nicodemos é o exemplo maior disso. Por três vezes ele se encontra com Jesus, no evangelho de João. O primeiro diálogo acontece num ambiente noturno, discreto, às apalpadelas, de desconcerto em desconcerto. Como pode um homem nascer sendo velho? Como pode alguém nascer do Alto? (João 3,4.9). Nicodemos ficou abismado. Mas não ouviu.

Ficamos sabendo que as palavras do Mestre haviam brotado dentro dele, lá pela metade do evangelho, numa segunda aparição, quando ele se levanta para defender Jesus, à vista da Suprema Corte de Israel: A nossa Lei permite julgar um homem sem antes ouvir e averiguar o que anda fazendo? (João 7,51). 

Nas últimas cenas do evangelho, já sem qualquer hesitação, ele reaparece, com José de Arimateia, para ungir o corpo de Jesus, levando 100 libras de um perfume caro. Sim, os judeus costumavam perfumar os mortos, mas não com aquele esbanjamento de perfume.

Essa foi a sua resposta. Nicodemos ouviu. Mas levou tempo. Foi preciso paciência.  Nós tratamos a vida com a mesma ansiedade dos corredores cinzentos, das filas, dos engarrafamentos de trânsito, sem paciência. Medimos a vida pelo relógio. Mas o que é o relógio, senão uma máquina neutra, uniforme, indiferente? O tempo do relógio não tem vínculos nem raízes. O relógio não tem paciência. 

E nada acontece sem paciência. O agricultor não escava a terra, desesperado, atrás do que ali depositou, mas se aparta da semente, deixando-lhe a confiança para florir. O pescador não abandona o mar por não ter conseguido peixe. Ele sabe que só há uma coisa a fazer: voltar no dia seguinte. A paciência é a arte de acolher o inacabado para realizar um trabalho incessante de ressignificação ou de reconciliação. O que dá na mesma.

A paciência é a mais heroica das virtudes, justamente por não aparentar nada de heroico. A palavra paciência, em grego, tem o significado de respirar bem, de não perder o ânimo. É isso que precisamos: aprender a respirar, longa distendida e abertamente. Sob o cutelo do resultado tudo se tornou ofegante e férreo. O resultado mata o que há de humano no humano.

Mas paciência não é indecisão. Paciência é a audácia de não se deixar instrumentalizar. A paciência é a capacidade de saber ouvir e não se desesperar.

A única coisa que o pescador sabe é que terá de voltar no dia seguinte. Se ele voltar é sinal que aprendeu a ouvir o mar.