Quando Jesus se transfigura

Cidades
Tpografia
  • Mínimo Pequeno Médio Grande Gigante
  • Fonte Padrão Helvetica Segoe Georgia Times

A proposta de alimentar este espaço, durante a Quaresma, com reflexões sobre o evangelho do domingo, nos traz hoje à Transfiguração de Jesus. “Jesus tomou Pedro, Tiago e João e subiu ao monte para orar. E, enquanto orava, seu rosto mudou de aparência e suas vestes brilharam de tão brancas” (Lucas 9,28). 

Antes, porém, preciso dar uma volta.

A cultura indo-europeia fincou os pés numa crença politeísta baseada na imagem. Muitos deuses, estátuas, pinturas: tudo ligado à imagem e ao ver. Nessa visão a história era cíclica, movia-se ao redor de um anel sem começo nem fim, como a alternância das estações. 

A cultura semita assistiu ao predomínio do monoteísmo: um só Deus. E a qualquer imagem dele interditada. O que valia: a palavra e o ouvir. E a visão linear da história, com começo, meio e fim. Deus havia criado o mundo e estaria lá, de novo, no final dos tempos. O valor dado à história fez dessa a cultura do registro histórico e do livro.

Jesus nasce e o Evangelho vem à tona, exatamente, no entroncamento desses dois perímetros culturais, num corredor estreito chamado Palestina, por onde transitavam rotas militares e comerciais. Ora, além de armas e comércio, o que mais essas rotas transportavam eram ideias. Elas levavam e misturavam ideias, fazendo daquele lugar, aliás único, um caldeirão de transformações sociais.   

Daí, observem que quando os evangelistas registraram o episódio da Transfiguração, o rosto e as vestes de Jesus brilhavam (imagem), mas o que deu sentido àquela experiência, a ponto de fazer dela um legado universal, foi uma frase ouvida e transmitida: “Este é o meu Filho, o eleito. Escutai-o.” A ordem não foi para ver. Quando viram, ficaram assustados. A ordem foi para ouvir. Ouvir para entender. Entender para preencher a vida.

Como falta isso! 

O que o homem moderno experimenta é um imenso vazio, uma insatisfação sem nome, causada pela superficialidade da sociedade que floresceu na banalidade do cotidiano. Na trajetória da humanidade, ela foi aprendendo a utilizar com eficácia a ferramenta da razão: acumulou dados, sistematizou conhecimentos em ciências, transformou a ciência em técnicas. Mas perdeu o horizonte do Mistério, o único capaz de aplacar os terremotos do coração. O homem se perdeu. 

Cabe à religião reencontrá-lo. 

A religião não pretende esclarecer o mistério do homem. Mas ela o confirma e aprofunda. O mistério do “Deus escondido” de que fala a religião adverte para o mistério do “homem escondido”. Toda religião que não afirme que Deus é oculto não é verdadeira, e toda religião que não dê as razões para tal não vale a pena. Sem esse mistério, tornamo-nos incompreensíveis para nós mesmos. O Mistério nos ilumina.

A Transfiguração descortina a imensidão do Mistério: de Deus e do homem. Quem é Deus, não basta. Quem é Deus para mim? Essa é a grande questão pertinente, que atravessa os séculos e se renova, a cada dia, numa novidade sempre maior.