Se eu quiser falar com Deus

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Numa das páginas mais impactantes da Bíblia, Jacó luta, durante toda noite, com um anjo. Ou seria um homem? Ou seria seu irmão Esaú? 

Quem visitar a história de Jacó vai encontrar uma sequência de erros, inaugurada por aquele desabonador roubo da herança. Vinte anos antes desse momento da luta, Jacó fugiu do irmão, a quem havia roubado, e se refugiou na casa do tio. Sendo assim, não é difícil admitir a última hipótese: nem homem nem anjo, é com Esaú, seu irmão, que Jacó luta.
Foi um acerto de contas. 

Momentos antes da luta, Jacó sabe que Esaú vem ao seu encalço com quatrocentos cavaleiros armados. Sabe que chegou a hora de passar a limpo os últimos vinte anos. Então, se despede da família, de tudo o que possui, e fica, ali, sozinho, na noite.Seria um acerto de contas, sim. Mas também com Deus.

Jacó, o impostor, enfrenta o Único que nem engana nem se deixa enganar. Naquela noite, as duas mais altas questões da existência se impuseram e se inscreveram a fogo no coração de Jacó: quem ele era, quem é Deus?  

À primeira questão, Jacó vinha respondendo desde as auroras de um crescimento trivial que instrumentaliza e embrutece a capacidade de sonhar; já via resposta nas transições da vida, atravessadas como ele atravessara o Jaboc, ali atrás. Mas à segunda, só mesmo lutando!

A luta de Jacó é a luta de todo homem, a sua, a minha. Cedo ou tarde, todos lutamos. Dela saímos mancando. A luta de Jacó é a luta do homem que corre atrás da intuição do sentido. E a mais alta intuição do sentido se chama oração. 

Às vezes, perguntamos sobre o sentido da oração. Orar é lutar com Deus para que Deus seja Deus. Orar é mostrar continuamente a Deus as crianças esfomeadas e dizer a ele: São teus filhos, Senhor! Orar é enfrentar Deus, na noite escura, para que a pessoa amada não morra, não pegue mais na garrafa nem na seringa, nem desapareça na poeira do desespero. Interceder significa lembrar a Deus aqueles que têm todos os motivos para se sentirem esquecidos por ele. Orar é lutar.

“Alguém lutou com Jacó até o romper da aurora. (...) E ele disse: Deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Mas Jacó respondeu: Não te deixarei, enquanto não me abençoares” (Genesis 32).

Orar é não deixar Deus por nada. Orar é lutar com Deus para que Deus seja Deus. Mas é também lutar consigo mesmo para aceitar que só Deus seja Deus.

Quem é o Deus de Jacó? Quem é o nosso Deus? Quem nos assalta nas noites da vida? Quem nos abençoa ao raiar da aurora? Quem se aproxima no isolamento circunstancial do hospital ou da velhice? Quem é esse conhecido-estranho que, vez ou outra, nos assusta?

As duas mais altas questões da existência também nos visitam. Quem sou eu, quem é Deus? É impossível responder às duas questões isoladamente. Cada resposta se encontra na resposta da outra. 

“Se eu quiser falar com Deus tenho de ficar a sós, apagar a luz, calar a voz.”

Se eu quiser falar com Deus tenho de ser Jacó–sozinho, na noite escura.

É assim. Ou não será.