Tratado sobre o poder

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Shakespeare é atemporal e um de seus textos acaba de ganhar ares contemporâneos. Com 14 anos de estrada, a niteroiense Companhia Teatral Recontando Conto – formada por 20 integrantes, todos voluntários, em sua maioria atores – estreia hoje “Aquela Peça Maldita” no palco do Teatro Popular. A tragédia musicada é uma adaptação do texto “Macbeth”, do dramaturgo inglês, e fica em cartaz até dia 15 de outubro, aos sábados e domingos, às 11h. 

“Aquela Peça Maldita” debate o poder e se é possível se proteger de uma maldição, mesmo que provocada pelas próprias decisões dos personagens. Discute, principalmente, se existe alguma forma de se desfazer o mal causado por determinadas escolhas. Uma vez tomada uma decisão, é possível voltar atrás? Como lidar com as consequências? A premiada diretora e dramaturga Andréa Terra, que dedica a sua pesquisa à riqueza da cultura popular e ao resgate das tradições regionais, é responsável pela tradução do original inglês e compartilha a adaptação e a direção com Douglas Ramalho. 

“É a primeira vez que divido direção e adaptação na cia. com alguém, e foi um belíssimo trabalho em conjunto. O Douglas é cria da casa. Ele entrou ainda menino, construiu um trabalho forte e, hoje, também está terminando o mestrado em Filosofia na UFRJ”, acrescenta Andréa. 

Toda a direção de arte da peça, assinada por Vinicius Andrade, é inspirada na estética da obra do artista plástico brasileiro Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).

“Como ele é um artista que tem uma história de distúrbio de saúde mental e o ‘Macbeth’ aborda questões da loucura também, fizemos essa ponte e essa homenagem a ele no cenário (Julia Onofre e Felippe Ronan) e figurinos (Vinicius Andrade)”, revela a diretora. 

É imprescindível falar que a cia. – cujos integrantes cuidam de toda a produção, montagem, figurino e cenário – foi criada para que os recursos gerados fossem integralmente convertidos para a Casa Maria de Magdala, instituição filantrópica que cuida de pacientes adultos e crianças soropositivos no Sapê, em Niterói. Com “Aquela Peça Maldita” não será diferente. A montagem integra-se ao conceito da cia. de se manter sustentável sem dar ônus à instituição com a produção de suas peças, ou seja, o grupo de artistas reaproveita vários materiais e roupas para customizar e criar o figurino e cenário. 

“Trabalhamos de forma comunitária. A gente trabalha muito com reciclagem, ressignificação de materiais. Quando precisamos de um figurino, não compramos nada. Nós fazemos a partir da matéria-prima doada. Para o artista, isso é muito desafiador, porque ele vai lidar com o que ele tem para fazer o que ele precisa. São artistas de múltiplos saberes para construir o nosso trabalho. Criamos um conceito, uma forma de trabalhar nossa arte”, afirma a diretora.

Em cena, seis atores dão vida a dez personagens. Camila Zarite e Cris Mathias interpretam os protagonistas Macbeth e Lady Macbeth e os demais atores se revezam em outros oito personagens. O restante da companhia está envolvido com a peça nos bastidores, já que todos fazem todo o trabalho nas montagens. 

“Quando a gente foi montar o elenco, os atores da cia. puderam escolher quem ficaria nos bastidores e quem ficaria no palco. Tínhamos cinco meninas e um menino que se prontificaram para entrar em cena. Fomos pelo perfil de cada artista para a escolha dos personagens, e duas mulheres acabaram escolhidas para interpretar os protagonistas”, conta Andréa. 

Camila Zarite, que acabou assumindo o papel de Macbeth, fala sobre a experiência de interpretar um homem no palco: “No começo, foi difícil encontrar a gênese do personagem. É trabalhoso, e se tratando do tirano em questão, achar a tirania em mim, apropriar-se das possibilidades que os homens têm sobre nós e sobre o mundo em que vivemos é profundamente transformador. Quando me enxerguei em Macbeth, pude ver com os seus olhos as minhas dores e confusões mentais, eu senti ali que, independente de gênero, ser rei ou rainha é pecaminoso e vergonhoso quando pensamos nessa sociedade desigual de que fazemos parte”, reflete Camila, que entrou para a companhia esse ano. 

Como a peça aborda as questões de poder e as responsabilidades que trazem nossas escolhas, Camila argumenta que não acredita na dicotomia do bem e do mal, e que a peça a fez refletir muito sobre isso, principalmente pelo fato de ela ser graduanda em Serviço Social.

“Como se ascende socialmente sem ‘pisar’ em alguém? Em que lugar poderíamos viver sem nos atropelarmos? Sem nos debatermos por uma vaga de emprego, por exemplo? A riqueza é intrínseca à pobreza. Sabendo como é a justiça no Brasil, a justificativa do fim pelos meios, para mim, é possível se depender do agente e sua condição. Em uma sociedade desigual onde nem todos dispõem dos mesmos meios para chegar aos mesmos fins, às vezes os fins podem justificar os meios. A questão está em se é possível voltar atrás depois de uma ação cometida”, pondera a atriz.

E não para por aí, a Companhia Teatral Recontando Conto acaba de ganhar o edital de ocupação do Teatro Popular Oscar Niemeyer, feito pela Secretaria Municipal de Cultura e Fundação Arte de Niterói, para apresentar também a peça “A Farsa da Viúva Arruinada”, um musical que vai contar com músicos ao vivo no palco. A temporada será de 28 de outubro a 5 de novembro, sábados e domingos, às 19h. O espetáculo será o segundo em que Camila vai atuar na companhia.

“Estudo diariamente sobre as questões sociais presentes em nossa sociedade, e sabendo do propósito da cia. em arrecadar renda para ajudar a manter a Casa Maria de Magdala, é maravilhoso. O teatro tem uma função social importante no mundo, é um grande instrumento de comunicação, e considerando que estudo em uma universidade federal, mantida pelos impostos de todos, ofertar o meu trabalho a quem precisa é muito gratificante e me sinto feliz por poder fazer parte desse tipo de ação”, celebra Camila.

O Teatro Popular Oscar Niemeyer fica na Rua Jornalista Rogério Coelho Neto, s/nº, no Centro de Niterói. De 30 de setembro a 15 de outubro, sábados e domingos, às 11h. Duração: 60 minutos. Preço: R$ 20 (inteira). Com 1kg de alimento não perecível paga-se meia. Censura: 12 anos. Telefone: 2613-2734.