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As obras de Filipe Salvador possuem a variedade de cores característica da arte tradicional africana, mas com um estilo peculiar

Foto: Divulgação

Por Daniel Malafaia

Ele passou fome, sobreviveu a duas guerras, a um atropelamento e a um acidente de carro e ainda virou artista plástico. Esse é apenas um trecho da vida do pintor angolano Filipe Salvador, cuja biografia, “Filipe Salvador: a cultura de Angola no Brasil”, escrita pelo jornalista e escritor niteroiense Pedro de Luna, expõe a realidade cruel e fantástica dos movimentados 46 anos de vida do artista. Nada melhor do que o Consulado Geral de Angola no Rio de Janeiro sediar o lançamento da obra, que acontece nesta quinta-feira (7), a partir das 17h, que conta com uma exposição de 20 obras de Filipe, com curadoria de Geraldo Soares. 

Segundo Pedro, seu interesse pela história de Filipe começou no primeiro contato com seus quadros, principalmente com os que retratam a Guerra de Angola, porque, além de serem visualmente chocantes, trazem muito da vida dele, principalmente da época em que se alistou no exército, aos 14 anos, e ficou 200 dias preso em um campo de concentração, onde passou fome e presenciou mortes. 

Suas obras possuem a variedade de cores característica da arte tradicional africana, mas com um estilo peculiar. Filipe tinha uma marca registrada, que ele chamava de “movimento”, e alguns críticos chamam de “redismo”. Quando o quadro já estava pronto, ele fazia uma espécie de vitral, disposto como uma rede de pesca, ou até como uma teia, por cima da tela.  

“Como eu também sou desenhista e tenho todo um apreço por arte, quando vi os quadros dele, achei realmente muito interessante porque eram diferentes de todo o resto que eu já conhecia de arte africana. Depois, fui descobrir que a história de vida dele era tão fantástica quanto seu trabalho, pelo fato de ser um dos primeiros refugiados de guerra que vieram para o Brasil. Hoje é um tema que se fala muito, mas, naquele tempo, nos anos 80, sem internet, sem tanta tecnologia, a gente não conseguia saber o que acontecia no resto do mundo, a não ser que saísse no jornal ou na TV”, comenta o escritor. 

Após dar baixa no exército, Filipe iniciou os estudos em artes plásticas e obteve tanto destaque que ganhou uma bolsa na Escola Superior Real de Belas Artes de Estocolmo, na Suécia. Ao retornar para Luanda, entrou para a União Nacional dos Artistas Plásticos de Angola (UNAP), iniciando, assim, sua carreira de pintor profissional. 

Jornalista expõe a realidade cruel e fantástica dos anos em atividade do artista angolano

Foto: Divulgação

O artista sempre desejou se mudar para a Europa, mas nunca conseguiu. Ao conhecer seu assistente de pintura Barros Tambo, decidiu em 1988 vir para o Brasil com o objetivo de fazer uma escala antes de morar nos Estados Unidos. O início foi bem difícil. Morou em uma pensão no subúrbio e, mais uma vez, teve que conviver com a fome, até que, por obra do destino, foi trabalhar como caseiro para o famoso cenógrafo Gringo Cardia e virou um grande amigo da atriz Marisa Orth, que também estava chegando ao Rio naquele momento para começar sua primeira novela.  

A partir daí, conciliando com seu trabalho de caseiro, Filipe começou a pintar capas de discos, cenários e quadros sob encomenda. Em uma de suas primeiras exposições coletivas, no Parque Lage, ele conheceu a primeira apresentadora negra da TV brasileira, Anna Davies, por quem se apaixonou à primeira vista e teve seu primeiro filho, Kyesse Freedom. 

Pedro diz que, apesar das conquistas e coincidências boas, o final da vida do pintor foi muito conturbado, quando começou a usar cocaína como solução para conseguir trabalhar de madrugada. 

“Nos últimos anos de vida, o Filipe ficou muito mal, estava doente, bebendo, usando muitas drogas. Ele foi para Salvador para ver se os ares da Bahia fariam bem a ele. Então, acabou trabalhando para uma pessoa - no primeiro momento, ele não sabia - que era um dos traficantes de drogas mais importantes da Bahia naquele momento, o Raimundo “Ravengar”. Ele tinha uma casa de shows em Salvador e o Filipe, a convite, passava o dia inteiro pintando lá. Hoje, o Ravengar está em um presídio. Até eu conseguir que ele autorizasse para que eu fosse lá na prisão e fizesse a entrevista, levaram meses, mas foi fascinante porque ele realmente tem muito carinho e apreciação pela obra do Filipe. E isso é algo inusitado, porque, quando é que você encontra um traficante que gosta de arte?”, questiona o autor. 

De acordo com Pedro, as expectativas para o lançamento são as melhores possíveis. 

“A gente espera que o Filipe tenha um reconhecimento, mesmo que tardio, não só no Brasil - onde ele até teve bastante reconhecimento com suas exposições - mas principalmente em Angola, porque é muito triste alguém que lutou pelo país como ele lutou não ser reconhecido como merece. Depois que ele veio para o Brasil, nunca mais voltou a Angola, o filho do Filipe e a viúva nunca foram à África. Quando o Filipe morreu, o maior sonho deles era enterrá-lo e homenageá-lo em Angola, o que, infelizmente, nunca aconteceu. Mas esse reconhecimento está próximo. Vamos lançar o livro no Consulado aqui no Brasil. Com a eleição presidencial em Angola – um marco depois que o país ficou 40 anos com um mesmo presidente –, estamos muito esperançosos de que, com o novo presidente e com novos ministros, a gente tenha convites para lançar o livro, fazer exposição e prestar homenagens ao Filipe em Luanda”, torce Pedro. 
  
O Consulado Geral de Angola no Rio de Janeiro fica na Av. Rio Branco, 311, Centro do Rio. Quinta-feira (7), a partir das 17h. Entrada franca. Classificação: livre. Telefone: 3526-9429.