O problema dos brancos (parte 2)

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Ontem, fiz aquela maratona acrobática que alguns artistas fazem: apresentei o “Parem de Falar Mal da Rotina” em Porto Alegre, na hora do almoço, e a peça “A Paixão Segundo Adélia Prado” na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, à noite. Foi pauleira, mas é bom. A apresentação do “Parem” foi temática, específica para a reunião dos Procuradores da República do Ministério Público do Trabalho. Ao começar o espetáculo, observei que não havia nenhum negro na plateia, entre os 200 participantes. Ou talvez, um. E começamos a levantar esta lebre: porque, se ali estão os idealistas, muitos ali, quero crer que a avassaladora maioria, estão ali porque querem servir. Se está num cargo de ordem vitalícia, ou seja, para toda vida, e ocupa uma posição onde representa os interesses jurídicos e públicos do trabalho de uma nação, por que não tem preto, então? Não podem ser juristas? Procuradores? Eu mesma tenho um irmão Procurador do Estado, mas faz parte de uma expressiva minoria. Fiquei muito feliz em fazer esse trabalho, o diálogo entre a arte e a procuradoria é aparentemente inusitado, e, no entanto, absolutamente necessário.

Ao contrário do que muitos imaginam, encontra-se ali muita gente bacana, com avançados pensamentos de respeito à vida e à popularização da justiça. Há entre estes muitos não caretas, vê-se ali, e não só ali, aquela reflexão mais profunda, menos óbvia, graças a Deus. Houve, por exemplo, um momento emblemático em que uma procuradora loira gentilmente ofereceu-se para tirar uma linha que, pendurada no meu vestido, estava invisível, porém notadamente me incomodando enquanto eu tentava durante a performance, em vão, tirá-la. Pois enquanto a delicada mulher o fazia por mim, que cheguei bem perto de sua cadeira para tanto, eu disse ao microfone: “Ai, como é bom ter uma branquinha trabalhando para mim”. Rimos todos, o riso do desconforto, do desconcerto, do lugar do inadequado, simbolicamente a frase desconstrói um padrão de piadas no território racial por uma simples inversão de posições usuais.

Completei em seguida: “Ô, meu deus, por que estou fazendo isso? Que pobreza de espírito a minha, é só por vingança histórica? Pra quê isso?” Todos riram mais ainda. Desculpa, gente, isso é humor branco. Ou será humor negro? O episódio nos leva a todos, depois de nos recompormos da inevitável zona do gargalhar novo, a uma reflexão sobre o conteúdo dos chistes e das piadas em geral, que vêm sendo observado e criticado por uma nova escola do humor contemporâneo, quando insiste em só bater em quem já apanha, em privilegiar sempre os privilegiados. De modo que nos acostumamos com a graça a partir da sacanagem feita aos negros, aos gays, aos deficientes, à mulher, ao pobre. Nota-se que raramente um rico é o perdedor nas anedotas. Ninguém diz: “Estavam todos lindos e chegou a brancona no baile”.

Explico que a graça da minha performance certamente não estava no revanche, afinal, não vejo a intolerância como caminho de evolução possível. Quero dizer que a revolução do chiste, naquele momento, estava em usar sua própria estrutura, ou seja, a liberdade do território humorístico, para inverter velhas convenções que nem por brincadeira fazemos. No humor tudo pode e, quando invertemos radicalmente as posições mais usadas, é que podemos explicitar, eu diria pedagogicamente, os absurdos que viram normalidade nas relações opressoras. Por exemplo: o Brasil não está acostumado a ir numa cerimônia cujos anfitriões poderosos, políticos, representantes da república e da sociedade, sejam negros, como acontece em cerimônias em Moçambique e Cabo Verde, por exemplo. Se fizermos uma ficção onde os empregados todos sejam brancos e os patrões negros, ficará mais clara e chocantemente provada o absurdo da discriminação racial. Sua inconsistência filosófica, sua injustificada norma antropológica, que acredita na superioridade de uma etnia sobre a outra. Mas não se está propondo a vingança através deste humor, reitero. O gênero humorístico apenas expõe nossa loucura e faz com que chamemos de impensável o que vemos. Mas impensável por quê? Uma pretinha servindo uma branca como condição não seria uma cena impensável também?

Foi lindo o encontro dos procuradores, muita gente bacana e inteligente e comprometida com um serviço público que seja mais efetivo, mais próximo à população ao qual representa. Uma honra para a arte dialogar com o serviço que desemboca na cidadania. Meu filho, Juliano Gomes, defende o sistema de cotas para o judiciário e tem toda razão. É preciso que encontremos entre os que estão em posições dominantes, pessoas que se vejam na pele dos dominados, digamos assim. Ou melhor dizendo, um juiz preto tem, a princípio, mais contato com a realidade que ele vai julgar, e uma relação onde ele se vê como um espelho e onde ele sabe que a injustiça campeia, exatamente por conta da cor da pele. Estamos engatinhando neste assunto. A geração tombamento, o feminismo jovem, a negrada crespa com o seu black power tem aumentado e invadido as cenas urbanas. Turbantes se aproximam cada vez mais, e se impõem. No entanto, é no imaginário que temos que atacar. Esta luta é simbólica também. Se dá no campo das representações. O papo é sério, repito, e espero que branquin entenda. Olha, se eu não fosse negra, não gostaria que tivessem de mim a imagem de uma pessoa racista e eu iria varrer de minha vida, privada e pública, qualquer indício disso.