Pitanga, um elogio ao ouro humano

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Meu coração ficou lá ou de lá regressou mais rico? Estou maravilhada com o que vi. Se aquela sessão fosse uma  mera revista de celebridades, diria assim: “Antônio Pitanga à frente do seu clã abre as portas de sua mansão.” Mas não, para a nossa graça e glória não se trata de tal efemeridade e futilidade de uma página dupla de uma publicação semanal. Os olhares iluminados de Beto Brant e de Camila Pitanga trouxeram-nos notícias essenciais de outro ouro, trataram de organizar a riqueza da vida e da arte desse lendário ator brasileiro  e , através desta obra,  poeticamente nos educa, informa, esclarece e abre as portas do surpreendente palácio do rei: sua vida-obra. 

Professor de vida, a história de Antônio Pitanga  se mimetiza à história do cinema brasileiro, e em especial, do inquieto cinema novo. Então, somos expostos ao tesouro histórico que constitui o acervo deste negão que, sozinho, tem a força de uma tribo, tornando-se mestre de todo o lugar onde chega. Não se fica indiferente à presença deste digníssimo rei. Pitanga é um griot excepcional, exímio contador de histórias que a gente não esquece. Sabendo disso, Beto Brant, apoiado no brilhante e sensível roteiro de Xarlô, a despeito de ser documentário, deixou que o protagonista contasse sua história. Entre antológicas imagens do melhor de nosso cinema através dos tempos, e a conversa do nosso herói com os outros “personagens” de sua vida-arte,  o cinema todo segue inebriado. Chora, aplaude, ri, urra, grita. Houve quem esquecesse que aquilo não era ficção. 

O filme é uma grande obra lírica, de narrativa leve, divertida, imprevisível, moderna e profunda.  Mistura híbrida e pouco usual para um exercício cinematográfico de tamanha pegada política. Para a nossa alegria e em respeito à sétima arte, Beto Brant segue , como sempre, desviando de todos os óbvios. É um filme que por si só possui ação afirmativa dentro das relações raciais brasileiras , sem que se lance mão de um único clichê, sem tocar no tema. Está lá. É africano. Tem a força. Urdido numa narrativa de um sensível fio erótico, marca intransferível do nosso herói, tudo  que ali ficamos sabendo  dele, é e foi talhado nos tatames da ousadia, na magia da interpretação; nos fundamentos dos mistérios, nos terreiros da coragem, nas danças  da valente alegria, na incessante reinvenção desse jovem veterano preto brasileiro .

O delicioso e contundente conteúdo chega até nós generoso. Dá vontade de ser Pitanga quando a gente crescer. O que vemos na grande sala de exibição vem apimentado de sua graça, sua “capoeira mental”, sua ginga, sua irresistível teia sedutora que encanta a todos e em especial, mulheres, ao longo da sua trajetória. O homem faz coisas de tremer as pernas de Maria Bethânia. Contemporâneo, atemporal, doce provocador, Pitanga corteja sem oprimir o feminino. Herdeiro dos ensinamentos de dona Natividade, o nosso herói deu nó em pingo d’água sendo o pioneiro daquele momento do cinema brasileiro, sendo vanguarda na sensível criação dos filhos sem a presença materna e, longe dos estereótipos machistas, traçou família e trajetória criando verdadeiras jóias humanas.

Embalados pela excelente trilha sonora  de Rica Amabis e Beth Beli, somos expostos àquele acervo de uma vida rica de preciosidades não encontráveis facilmente. O pássaro da coerência poética pousado ali, faz a gente compreender o homem, o artista, o brasileiro, o pai, o mito. Fica posto e claro que sua dignidade, sua clareza política-ideológica em relação à vida, o fez  “escrever” a próprio enredo com uma originalidade ímpar que o levou para longe das  tristes estatísticas e da palavra impossibilidade. 

Viva Pitanga forever, este chiquérrimo cavaleiro todo de linho branco e chapéu Panamá, habitante do onírico dentro da vida. É seu território. E caiu nas graças de quem sabe ver  o raro no aparentemente simples. 

Sou fã incondicional deste cineasta, sou brantiana desde pequenininha. O homem sabe que está fazendo cinema, não abre mão disso; sabe que pode nos impressionar, espremer nosso coração, nos levar ao pranto e ao riso pela habilidade de sua câmera clara, objetiva, lúdica, ousada, que nos leva muitas vezes a lugares onde nunca fomos. 

Ele sempre me levou pela mão. Foi assim com “Os Matadores”, “Ação entre amigos”, “O invasor”, que pra mim é um filme filosófico sobre a consequência, sem contar suas ousadias existencialistas, afirmadíssimas em “Cão sem dono,” até “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, película ímpar que nos encharcou de beleza. 

Nesta sessão antológica do seu “Pitanga”, achei-o mais cirúrgico ainda. Mais malvado com o meu pobre coração. E eu não estava só. A plateia, de todo o tipo e gosto, alternava-se em lágrimas e gargalhadas de uma maneira naturalíssima, com o mesmo desprendimento das crianças, dos inocentes. Um encantamento. O filme é belo e forte. Um doc de pegada dramatúrgica tão particular que parece ficcional. E torcemos pelo herói com a esperança de quem não sabe o final. 

Parabéns Camila, Beto, meu incrível Xarlô e toda a abençoada trupe, parabéns, escafandristas, parabéns! O mundo precisa por olhos nas vitrines destas riquezas inafanáveis. Tal percurso estético e emocional segue fazendo desenhos até agora no meu coração.