A mulher da carruagem de fogo

Giselli Ribeiro - Foto: Divulgação

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O mito eterniza personagens presentes na história e na literatura para melhor compreensão e análise do cotidiano, dando respostas às questões que a razão não necessariamente compreende. O mito tenta explicar o inexplicável. Para Albert Camus, "os mitos são feitos para que a imaginação os anime". Há uma reatualização dos mitos, dando vida a personagens, suas glórias e desgraças, iniciando o processo de trazê-los para o contemporâneo.

Tomemos como exemplo o mito de Medeia, escrito por Eurípedes, que é uma das primeiras manifestações artísticas do mundo em que uma mulher se revolta contra os sofrimentos impostos a si, justamente por ser uma mulher. Escrita em 431 a.C., "Medeia" é um dos textos mais encenados ao longo dos séculos. No cinema ganhou versões de Pier Paolo Pasolini, em 1969, e Lars Von Trier, em 1988. Já no teatro, a primeira "Gota D'Água" foi escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes, em 1975, e a segunda, "Mata teu pai", por Grace Passô, de 2017.

Na tragédia narrada por Eurípides, para que Jasão pudesse ocupar o trono a que tinha direito por herança, ele deveria conquistar o Velocino de Ouro. Ao chegar em Cólquida, onde guardava-se o Velocino, o Rei Eetes impôs a Jasão o cumprimento de quatro provas para alcançar a posse do valioso objeto. Apaixonada por Jasão, Medeia o ajuda a conquistar o Velocino. Juntos, fogem de Cólquida para Corinto. Para garantir a fuga, Medeia mata o irmão e joga seus pedaços ao mar. Porém, em Corinto, Jasão se casa com Gláucia, filha do rei Creonte. Medeia, cega de dor e ódio, se vinga de Jasão matando Gláucia e os próprios filhos, indo embora em seguida numa carruagem de fogo.

Em "Mata teu Pai", Grace Passô, faz um recorte crítico sobre o mito para além da leitura infanticida proposta por Eurípedes. Passô faz compreender que, na verdade, o errado é Jasão, pela traição. A Medeia desta leitura traz pontos que são recorrentes em nossa sociedade: a mulher traída que agride a amante. É como se a mulher assumisse a responsabilidade pelo homem, afinal, somos ensinadas desde cedo que temos que amadurecer mais rápido, ao mesmo tempo em que aos homens, é permitido ter atitudes e comportamentos infantis, porque a sociedade acredita que eles demoram mais para amadurecer. Para Passô, Medeia não quer matar os filhos, como fez a de Eurípedes. Ela quer matar o pai, com isso matar o patriarcado e o que dele existe em nós. Como acontece quando queremos que o outro perceba seus preconceitos e nós não percebemos os nossos.

Existe uma atualidade muito forte na figura e na história de Medeia, que libera a voz feminina que não só se sente profundamente injustiçada, mas que também recusa o confinamento ao espaço doméstico. Traz uma crítica ao comportamento masculino e da institucionalização de seu poder, ancorada na linguagem da retórica e da argumentação preservada para os homens. Ao mesmo tempo em que há uma dicotomia em Medeia, pois coexistem nela a figura infanticida, a mãe que matou os filhos, mas também há a força que a marca a vontade de existir e contar sua própria história. Ela não quer ser marcada somente como a esposa de Jasão e assassina dos filhos.

À luz da contemporaneidade, é possível refletir o quanto nossos corpos de mulheres, ainda mais das mulheres negras, estão imersos numa lógica econômica, onde vemos a naturalização da violência, do estupro e do feminicídio. Vivemos numa sociedade cujo sistema foi feito para nos exterminar. O reconhecimento do patriarcalismo, seus lamentos sobre a condição de ser mulher, somado ao fato de ser a base e o sustentáculo do heroísmo do homem que amava, bem como a questão da maternidade, tornam Medéia um símbolo da opressão da mulher ao longo da História, repercutindo em teorias recentes sobre o sexo feminino como o outro lado da moeda: a libertação do estado de sujeição.

É importantíssimo pensar a resistência de Medeia enquanto potência do feminino, pois muitas histórias foram destruídas para silenciar. A história de Medeia nos propõe acabar com a manutenção do machismo que coloca nós, mulheres, como coisa, objeto sexual e ser passivo. Medeia nos incita, provoca e tensiona para que sejamos mulheres… da carruagem de fogo.

 *Giselli Ribeiro é produtora cultural, especialista em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação pelo IFRJ e formada em Artes Visuais pela UERJ