Nenhum autoritarismo deve ser esquecido. Tentar passar por cima deste tipo de lembrança é um erro, como apontaram exaustivamente os pensadores da Escola de Frankfurt, no período pós Segunda Guerra Mundial, em relação ao passado nazista na Alemanha. Os alemães tentaram esquecer o período histórico, mas após muita discussão nos âmbitos acadêmico e político, decidiu-se que era necessário manter as doloridas e vexaminosas lembranças para que as gerações futuras não as repetissem.
Essa decisão parece simples, mas foram necessários anos de discussões e produção de livros e artigos para que essa questão fosse assim resolvida. A Alemanha hoje tem uma série de locais históricos e museus que contam a história do nazismo. É preciso coragem para ter responsabilidade de verdade, como essa. A construção de um mito já nasce fadada ao fracasso, mas é capaz de estragos múltiplos e massivos durante seu curto caminho. Vou usar a explicação de um sniper para justificar essa crença. Segundo o atirador, quando o ser humano está em grupo, é preciso atirar no que vem na frente, pois quando o primeiro é atingido, os outros demoram alguns segundos para entender o que está acontecendo e demoram a reagir. Desta forma, atirando no primeiro, paralisa-se automaticamente os seguintes e assim é possível abatê-los. É método. Assim que penso que acontece quando tentamos esquecer a História: vemos as coisas se repetirem e demoramos a notar que tem algo de muito errado ali, pois já conhecemos a sensação, mesmo sem tê-la vivido antes. Vou fantasiar que o absurdo AI-5 só foi declarado porque havia um medo enorme das pessoas perceberem, depois de um tempo, o engodo que eram os mitos da época.
Digo isto porque a novela Roque Santeiro foi um dos alvos dessa norma. Uma novela! Imaginem os noveleiros o quanto sofreram: não podiam falar mal dos governantes, não podiam falar de política e ainda não podiam ver a novela! Gente, tinha Regina Duarte, José Wilker e Lima Duarte! Dói só de pensar. A história, pra quem não viu, era do Roque Santeiro, que teria morrido salvando a vida de pessoas ao lutar contra a invasão de bandidos. Acabou santificado e teria sido responsável por vários outros milagres na cidade de Asa Branca. No entanto, Roque Santeiro estava vivo o tempo inteiro e queria voltar para a cidade, o que trouxe desespero para todos que passaram a lucrar e conquistar espaços de destaque na sociedade em cima da construção da lenda mentirosa. Bastava Roque Santeiro aparecer para que todos de Asa Branca desvendassem em segundos todas as mentiras que viveram. A partir de então, os grandes figurões, que tanto fizeram pela a construção do mito, dão o tom de suspense na novela ao tentarem repetidamente evitar o reaparecimento público do santo que nunca existiu.
O ano era 1975, mas poderia ser 2022, afinal a esperança de que apareça um salvador da pátria ou um salvador de um município que seja, é sempre desejado, faz parte da natureza humana. Ter esperança, aliás, é esperar que outro faça, portanto, leio essas construções de ícones sempre com descrença, pois se a gente quer que alguma coisa funcione na nossa vida, não é à espera de outro que vamos conquistar. É preciso arregaçar as mangas e estarmos preparados para agir e assumir a responsabilidade por tudo aquilo que viermos a fazer, errar e acertar. Lendas e mitos não pagam as contas, não explicam e nem compreendem, mitos tapam buracos que cismamos que não podem ficar abertos. O vazio é normal, e é saudável tê-los. A incompletude e as falhas apenas confirmam que somos humanos, como demonstraram Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Todo período de autoritarismo visa justamente tamponar todas essas falhas, e, é claro, sempre que isso é feito, mentiras são necessárias. Quem não acreditar nelas, será acuado até dizer sim. São capazes de transformar qualquer sociedade num bando de Macabéas que passam a desejar apenas uma morte tranquila, tal como Clarice Lispector imaginou em "A Hora da Estrela". É a proibição da pluralidade, das diferenças. Isso é tão absurdo que, para mim, o AI-5 leva o troféu da minha coluna, como uma das mais bizarras. Na semana eleitoral, é bom lembrar que a diversidade é o princípio mais básico da democracia.
*Nathalia Alvitos é jornalista, escritora, psicanalista e membro da Academia Niteroiense de Letras (ANL).
Parece piada, mas foi lei e pode voltar
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