Dois anos sem Gilson Cantarino

Marcus Vinícius Dias - Foto: Divulgação

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Uma das coisas mais fascinantes da existência é que aspectos da vida de uma pessoa absolutamente comum e ordinária podem se assemelhar aos de um ser notável, absolutamente acima da média. A arte literária e cinematográfica, por diversas vezes, já explorou essas "coincidências" que permeiam, curiosamente, a vida de duas pessoas, sendo uma delas um reles mortal e a outra um "outlier", um fora da curva.

Um destes notáveis, na Saúde Pública, foi o saudoso médico Gilson Cantarino, que em 1975 se formava em Medicina na Universidade Federal Fluminense, mesma escola que exatamente 30 anos depois eu também tive a honra em me graduar.

Doutor Gilson era um destes médicos servidores de carreira do Ministério da Saúde que, em conjunto com outros incomparáveis homens e mulheres, ajudaram a construir o nosso Sistema Único de Saúde, marco civilizacional da nossa gente e do nosso país.

Dentro deste mesmo ministério do qual doutor Cantarino foi parte, tive o privilégio de ingressar, por meio de concurso, como médico de carreira, e tive a chance de ver, a partir de uma visão da atenção especializada, o quanto a atenção primária é relevante.

Atenção primária esta da qual Gilson Cantarino foi um dos pilares fundacionais, a partir de sua inserção na gestão da saúde de Niterói. Bem antes de ser criado no âmbito nacional o Programa Saúde da Família, que posteriormente passou a ser denominado como Estratégia de Saúde da Família, Niterói inovava com seu premiado Programa Médico de Família, porta de entrada indefectível para um sistema de acesso universal em saúde eficaz e sustentável.

Como aluno da UFF, desde o primeiro período da Faculdade de Medicina, juntamente com os meus colegas de turma, já fui imerso no programa idealizado por Gilson e seus companheiros e, ainda calouro, já tinha contato com a realidade dos nossos pacientes.

Comandando a Secretaria Municipal de Saúde de Niterói na gestão do icônico prefeito Jorge Roberto Silveira, Cantarino pôde ser coroado pelos seus pares como presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, o CONASEMS e, posteriormente, quando assumiu a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro foi alçado ao posto de presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, CONASS, sendo até hoje o único a ocupar estes dois dos três mais importantes postos do sistema tripartite da saúde pública brasileira.

O destino me proporcionou a oportunidade de ser secretário no âmbito federal, pelo Ministério da Saúde e, por mais de uma vez, ter tido a honra de presidir uma sessão da Comissão Intergestores Tripartite, a CIT, na qual por anos doutor Gilson, ora pela ótica dos municípios, ora pela dos estados e, sempre, pelo lado do SUS, pôde defender e debater o nosso sistema público de saúde.

Sempre que na cadeira do Ministério da Saúde me sentei durante uma CIT eu procurei, de algum modo, imaginar o que o patrono da saúde pública de Niterói iria pensar ou falar sobre os assuntos que lá estavam sendo debatidos. E, na medida do possível, buscava me inspirar nos ensinamentos e realizações do meu conterrâneo.

Durante minha passagem por Brasília tive a oportunidade de conhecer diversos obreiros do SUS que tiveram o privilégio de ombrear, lado a lado, com o Gilson Cantarino na construção do Sistema Único de Saúde. A Jurandi Frutuoso, Neilton Araújo e ao queridíssimo Jocelino de Menezes sou especialmente grato pela acolhida e pelos testemunhos e histórias sobre o seu amigo Gilson.

Por completa ironia do destino, um gestor absolutamente comum como eu se sentou na única cadeira que o nome máximo da saúde pública de Niterói não teve a oportunidade de ocupar numa CIT. E embora seja fascinante como pessoas com realizações e habilidades distintas possam, por coincidências do destino, terem seus caminhos aproximados, também é curioso como esse mesmo destino pode ser injusto com uns, como foi com Cantarino, e generoso com outros.

Me resta apenas, como forma de agradecer à generosidade do destino, buscar manter em mim o espírito público que emanava da existência de Gilson Cantarino O'Dwyer e o consolo de ter ouvido de seus admiradores e companheiros de batalha que conheci em Brasília que, ao menos em temperamento, eu, de alguma forma, me assemelhava àquele que deu a Niterói o destaque que ela teve no cenário nacional de gestão pública de saúde. E isso, pra mim, é muito mais que um MBA.

*Marcus Vinicius Dias é médico formado pela UFF, servidor de carreira do Ministério da Saúde e atual diretor doHospital Estadual Azevedo Lima, em Niterói.