MEDO X CORAGEM: psicose instalada no Judiciário brasileiro

Luiz Maurício, jornalista - Foto: Divulgação

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 Poucos medos são tão difundidos e tão compartilhados quando o medo da decisão. Decidir é uma tarefa na qual supostamente somos especialistas: decidimos todos os dias e a cada instante. Escolher uma coisa ou alguém é uma decisão. Contudo, às vezes, somos travados e não sabemos qual a opção escolher.

A incapacidade de tomar decisão pode ser vivida por pessoas de diferentes culturas, profissões, nível de escolaridade etc. Mas, dentro do Poder Judiciário, o juiz tem a função precípua de decidir. Não pode ele titubear, decide sem medo, porque a lei, o sistema lhe dá garantias para isso. Será?

Cada vez mais o juiz é tomado por uma emoção: o medo de decidir.

Porque os juízes estão com medo, se a lei, a Constituição lhes assegura a garantia de não ser incomodado pelo teor de sua decisão?

Porque além dos vilões externos, como a mídia, a opinião pública, a crítica, o próprio medo de errar, o juiz tem agora o medo de ser punido, de responder a um processo administrativo por fazer aquilo que lhe é peculiar na sua função, decidir.

Pois é. Aos mecanismos de reforma da decisão (recursos), que outrora eram os únicos remédios para corrigir eventuais equívocos de decisões dos juízes, somam-se agora as táticas de intimidação externa, como ameaças de representações e denúncias às Corregedorias e ao Conselho Nacional de Justiça. Há também o receio de a mídia oferecer reportagens tendenciosas e influenciadoras, jogando a sociedade contra o judiciário.

Alguns estudos apontam para uma crescente influência da mídia nas decisões judiciais. Outro fator extremamente negativo é a grande exposição do cidadão, da sua família, quando sequer existe contra ele uma única investigação preliminar, ou um inquérito. Ao final, ele pode ser condenado ou absolvido, mas já foi exposto. Desperta-se uma curiosidade pública, mas esquece-se do interesse público em esclarecer a verdade no momento em que ela for declarada.

A mídia é fundamental, mas não pode ser desvirtuada e nem servir a um propósito escuso ou camuflado como dizia o filosofo Platão, em seu livro A República: "Não existe liberdade sem responsabilidade".

Não são raros, por exemplo, na história, decisões liminares de aumento de passagens de ônibus, que divulgadas de forma incompleta ou tendenciosa, geraram ou incitaram a manifestações contrárias à decisão, por vezes com uso da violência. Aliás, a reação dos interesses contrariados ostenta, as vezes, desmedimentos que podem provocar na consciência da sociedade, do povo, nem sempre esclarecida a descrença na justiça.

Muitas vezes o judiciário e sua alta cúpula permitem vazamentos de processos sigilosos contra seus pares (aliás nenhum processo sigiloso deveria estar em públicas vozes) sem adentrar para a circunstância de que, longe de estarem externando antíteses a parcimônia ou ao espírito de corpo, estão no fundo criando fissuras na base, enfraquecendo os pilares que o sustentam.

Poucas pessoas compreendem as dificuldades que passam os magistrados que integram qualquer tribunal. Poucos são os menos dignos. A esmagadora maioria estão assoberbados pela inópia de casos e recursos, suas decisões quase sempre são incompreendidas e causam ressentimentos injustos pela crítica de quem propaga o resultado sem conhecer as razões, os motivos da decisão. A cegueira e a paixão de outros, as vezes, a crítica interna escamoteada pelos corredores causa um desestimulo no meio adversando dificuldades sem conta e obstáculos invencíveis. Mesmo assim, segue o magistrado cumprindo seu dever, por vezes amargo como fel intransitivo dos grandes sacrifícios.

O juiz deve ser preparado para isso, mas a partir da criação do CNJ, tem o magistrado experimentado também a insegurança quanto ao escudo outrora intransponível, mas que vez por outra, vem sendo transposto, de que não somente o vilão externo... mas, suas garantias constitucionais, sua independência funcional pode ser questionada pelo órgão, dito como de controle externo, mas que tem se voltado contra o fortalecimento das bases da magistratura como um todo.

O judiciário não está acima das críticas, nem tampouco seus juízes imunes a pagar pelos seus erros. Mas é preciso encontrar uma forma de corrigir os equívocos, punir aqueles que não atuam balizados pela boa fé, com pureza de intenções e na retidão dos propósitos sem interferir na independência dos magistrados.

A "jurisdição censória do CNJ (expressão utilizada pelo Min. Celso Mello, do STF, no MS 28801 MC/DF) é importante e necessária, como no caso da Operação Naufrágio, deflagrada em dezembro de 2008 no Espírito Santo, prestes a ser julgado pelo STJ (https://www.agazeta.com.br/es/politica/denuncia-da-operacao-naufragio-entra-na-pauta-do-stj-0319), mas não se pode inverter a lógica corrente segundo a qual a maioria dos magistrados atuam com correção dentro da moralidade e dos princípios éticos vigentes. A presunção de inocência deve militar a favor dos juízes.

Os ataques a magistratura são correntes, e as vezes procedem, mas a independência do juiz é um atributo da democracia e um direito individual consagrado a parte que recorrer ao judiciário, uma prerrogativa que assegura a advocacia que pleiteia o caso e uma segurança de obter uma decisão justa e a estabilidade social com a pacificação dos conflitos.

Se um juiz se curvar aos poderosos, temer a censura ou tiver receio da crítica, o direito da parte lesada está duplamente ameaçado, a crítica ao Judiciário aumentará, a base estará cada vez mais fragilizada e, com o tempo, a cúpula, que ilusoriamente pensa existir sem a base, estará vulnerável. É preciso atentar que a independência do juiz é igual a ratoeira na fazenda: podem pensar que o assunto só interessa ao rato, mas no final, todos serão atingidos, dentro e fora do Judiciário: pois a quem se recorrerá se o direito for ameaçado ou violado?.

A magistratura é forte quando condena ou absolve seu par, mas é preciso ter cuidado para não eleger o seu par um malfeitor e execrá-lo perante a opinião pública, pois pensa-se estar fazendo um bem, ou se estar diante de um bom exemplo, mas na verdade, atinge-se a integralidade dos juízes quando não se preserva as garantias do juiz e quando há excessiva exposição, quase sempre desnecessária e inútil.

A teoria da separação de poderes de Montesquieu afirma a distinção das funções (executiva, legislativa e judiciária) e suas limitações mútuas.

Isso é muito importante para o equilíbrio da Nação, dentro de um Estado Democrático de Direito e possui ligação com a forma republicana de governo. Não há hierarquia entre os poderes e sim uma distribuição equilibrada de funções, prevendo prerrogativas e imunidades, mas também mecanismos de controle recíprocos, que são conhecidos como checks ans balances, ou freios e contrapesos, previstos na Constituição Federal, com vistas a manter o equilíbrio.

Contudo, o Poder Judiciário é mais controlado que os demais. O processo geralmente tem duas partes antagônicas, cada qual com seus advogados, as vezes também com a atuação do Ministério Público. Todos podem recorrer, do Juiz até o Supremo Tribunal Federal. Também o Judiciário está sujeito ao tribunal de contas e há ainda vários instrumentos de controle interno.

O juiz tem suas corregedorias internas, disque denuncia e mecanismos de fiel observância da lei. Além disso, ainda tem o Conselho Nacional de Justiça (criado em 2004 pela EC 45). Sem dúvida, o Judiciário é o poder mais fiscalizado que os demais, posto que nem o executivo, nem o legislativo tem "um órgão a mais de controle" externo de suas funções. Não se chega a dizer que houve uma violação do pacto federativo e da teoria da separação de poderes, mas é preciso lembrar sempre que o CNJ (necessário, como já se disse) não pode interferir na autonomia dos tribunais (inclusive dos Estados) e nem tampouco interferir no mérito das decisões judiciais, e, por consequência na independência dos juízes.

Infelizmente há inúmeros casos em que se discute a necessidade de se interferir no conteúdo das sentenças para julgar não a decisão, mas sim o magistrado.

Em agosto de 2018, o órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou pena de censura a um juiz alegando ser o mesmo "progressista demais". Apesar de ter sido declarado que todas as suas decisões eram fundamentadas, o Tribunal reconheceu que o juiz soltava muito, prendia pouco e aplicava penas muito brandas.

Por mais que se pense estar o juiz errado, há meios e modos de se mudar as decisões (recursos), mas punir o juiz por isso viola frontalmente a esfera da independência funcional da qual é dotada a magistratura. Há um componente ideológico na sanção aplicada. (episódio narrado no site "justificando" http://www.justificando.com/2018/08/13/sem-independencia-funcional-juiz-e-punido-com-censura-por-ser-progressista-demais/)

Episódios como esse são recorrentes, mas também se enxerga uma luz na escuridão. Na mesma fonte citada, consta menção a uma decisão do CNJ, à época, reformando um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que puniu uma juíza, hoje desembargadora, também censurada pela corte por proferir decisões que desagradaram a maioria dos membros do seu órgão especial. Neste episódio, o CNJ, reafirmou a independência da magistratura.

Sempre deveria ser assim, mas o que constatamos é uma proliferação de juízes que temem até mesmo dar seu depoimento de casos e mais casos em que foram punidos ou que decidiram diferente do que normalmente decidiriam, em função de haver um subjetivismo: as garantias que protegem a independência dos juízes não valem para todos...

Um exemplo vivo disso é uma recente recomendação do CNJ que mandou os tribunais cumprirem as decisões e atos normativos do órgão, "ainda que exista ordem judicial em sentido diverso", salvo se tiver como origem o STF.

A Ajufe impetrou mandado de segurança junto ao STF sustentando que não cabe ao CNJ, dado sua função jurisdicional, típica do Poder Judiciário, segundo a Ajufe, aqui também há um atentado a independência funcional dos magistrados (https://www.conjur.com.br/2019-jun-26/ajufe-stf-suspenda-recomendacao-desobedecer-decisoes)

E o que acontecia se um Juiz do interior do Amazonas decidisse contra uma recomendação do CNJ, para garantir o direito de uma parte? Teria o juiz "coragem" de decidir?

Não há como relativizar a garantia de independência de entendimento dos magistrados, ainda que desagrade a parte e seja contrária ao entendimento majoritário...

Para rever e questionar decisões judiciais fundamentadas, há meios e recursos processuais próprios. Não sendo aceitável o uso da via correcional ou disciplinar com o propósito de atingir a honra, a dignidade e o decoro do juiz.

A instauração de procedimento disciplinar contra juízes cabe apenas quando houver desvio de conduta ou efetiva falta funcional cometida intencionalmente e jamais contra o mérito de decisões judiciais ainda que provisórias (liminares), sob pena de ofensa à independência judicial.

O juiz deve estar seguro e isento de qualquer interferência externa. Não deve sofrer pressões, retaliação ou sanções quando decide e atua com base em entendimento jurídico, ainda que seja o minoritário. Seu convencimento deve ser formado sem influencias, desde a base se a cúpula permite, colabora ou mesmo elabora fissuras a independência da magistratura, como a fábula da ratoeira na fazenda, em muito pouco tempo, teremos esses questionamentos feitos também nas mais altas instâncias do País, ou será que já não estamos percebendo isso?