Racismo estrutural e dia da consciência humana

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Dr. Guaraci de Campos Vianna

Morgan Freeman, em um vídeo muito difundido se posiciona contrariamente ao dia da consciência negra. No vídeo, ele fala que sua história e a história dos negros não podem ser resumidas em um dia para se resolver o problema do racismo. Na sua opinião não se deve falar do assunto, e se deveria ter um dia da consciência humana, e não apenas negra, por que não existe um "dia da consciência branca", "dia da consciência árabe" ou "dia da consciência judaica", por exemplo.

Ninguém é obrigado a concordar com ninguém e ninguém pode ou merece ser confrontado (e, às vezes, agredido) por pensar diferente. Essa beleza da democracia e da liberdade de opinião.

Entretanto, mesmo que se tente, é difícil ignorar o racismo no mundo. Recentemente nos Estados Unidos tivemos notícias de manifestações nem sempre pacíficas, praticamente em todos os Estados americanos, por causa de um homicídio praticado por um policial branco, tendo como vítima um negro.

O mesmo acontece no Brasil, de uma forma ou de outra. Mas vamos deixar o casuísmo de lado.

A questão é que não se pode colocar como justificativa para a incompetência, a desídia ou até mesmo a justa causa o racismo. Mas também não se pode ignorar a existência de episódios e pessoas racistas.

A sociedade brasileira convive historicamente com 300 anos de escravidão e a "libertação dos escravos", necessária e tardia, foi feita de forma socialmente desastrosa.

Com isso, ainda se vê hoje negros com menos oportunidades de estudo e emprego. Recebem salários menores, que aliás é uma queixa também das mulheres, ocupam pouquíssimos cargos de chefia e de alto escalão, são os que mais morrem nas mãos da polícia e dos bandidos, dentre uma inimaginável lista de situações que fazem dos negros (ou de alguns negros) no Brasil injustiçados por uma herança maldita de três séculos.

A despeito da opinião abalizada de M. Freeman, no Brasil não se pode simplesmente ignorar isso. É preciso encarar tudo e buscar soluções.

Não é possível encontrar soluções "apenas" com campanhas, esclarecimentos ou medidas paliativas de enfrentamento.

Devemos começar entendendo que existe um processo sistêmico construído e retroalimentado para conferir privilégios a certos e determinados extratos de gentes promovendo artificial divisão humana. A isso chamamos de racismo estrutural.

É histórica a construção de hierarquias sociais através da instituição de critérios que atribuem distintas ocupações de lugares e espaços, por causa da condição econômica. raça e gênero. Silenciosamente as pessoas constroem sólidos pilares de desigualdade e o fazem com uma naturalidade tamanha que a maioria da sociedade entende e aceita como um padrão normal de comportamento. E até certo ponto pode até ser normal. Até certo ponto.

Sem dúvida, o padrão econômico mais favorecido pode fazer com que se frequente espaços diferentes. A escolaridade avançada pode permitir acesso a informações mais densas, e por aí podemos seguir.

Contudo, é preciso assegurar igualdade de oportunidades de acesso e, principalmente, não discriminar ou tratar diferentemente quem ocupa o mesmo espaço e está, em igualdade de posição, por questões de gênero, raça, cor de pele...

O legado trazido pela Constituição de 88 fez alguns acenos às insurgências negras da atualidade. A constitucionalização do direito à ancestralidade, o tombamento cultural de documentos e sítios históricos, o reconhecimento das terras quilombolas como território coletivo das comunidades detentoras da posse e história negra libertária, representam alguns avanços importantes. Do mesmo modo a criminalização do preconceito racial. Mas nada disso fez com que a sociedade rompesse com o preconceito, ainda que ele seja exercido de forma silenciosa pela maioria das pessoas.

As histórias individuais, de exceções, reafirmam a consistência do racismo estrutural que cerceia a população negra do acesso a cidadania com igualdade de condições, sem julgamentos seletivos em face das identidades ou critérios subjetivos. A cidadania nacional deve ser única e igualitária.

Tudo isso nos conduz a ideia de que é indispensável um debate profundo, em busca de interlocuções transparentes e sinceras com representantes de toda sociedade. O que se vê hoje é um debate restrito a um ou a uns poucos seguimentos. Colocam o tema como se fosse um confronto de uns contra os outros. Basta! Precisamos dar passos firmes e decisivos sobre trilhas nunca antes percorridas, por setores sociais hegemônicos capazes de desmantelar muralhas inviabilizadoras da coexistência humana pacífica. Nesse sentido, embora isso não seja real no momento, talvez no futuro possamos chegar no ambiente descrito por Freeman, onde não se celebre o dia da consciência negra, mas sim o dia da consciência humana.

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