Uerj é pioneira na implantação da política de cotas

Desde o vestibular de 2003, parte das vagas é destinada a alunos autodeclarados negros e pardos e estudantes da rede pública de ensino - Foto: Rogério Santana/Divulgação

Educação
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O pioneirismo na implantação da política de cotas coloca há 17 anos a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) no topo da lista quando se fala em ações afirmativas para a inclusão de alunos de todas as classes sociais e etnias em instituições públicas de ensino superior. Em todo o país, a Uerj, que completa 70 anos em dezembro, foi a primeira a adotar o sistema nos processos seletivos de ingresso de estudantes nos cursos de graduação.

Desde o vestibular de 2003, parte das vagas é destinada a alunos autodeclarados negros e pardos e estudantes da rede pública de ensino, com base na situação socioeconômica dos candidatos. Em 2018, o governo prorrogou por mais dez anos a validade do sistema de cotas nas universidades públicas estaduais do Rio. Pela lei vigente, 20% das vagas de cada curso deve ser destinada a pessoas negras, indígenas e oriundas de comunidades quilombolas; 20% a alunos da rede pública de ensino; e 5% a pessoas com deficiência e a filhos de policiais civis e militares, bombeiros e inspetores de segurança e administração penitenciária mortos ou incapacitados durante o serviço.

A medida é uma forma de reparação a uma exclusão histórica sofrida ao longo dos séculos. Nesses 17 anos, mais de 25 mil alunos concluíram seus cursos por meio da política de cotas. A importância da ação afirmativa do Estado do Rio se confirma com a mudança no perfil da Uerj ao longo desse período, já que a instituição ganhou mais diversidade e, consequentemente, mais debates sobre as questões raciais.

A pró-reitora de Políticas e Assistência Estudantis da Uerj, Catia Antonia da Silva, ressalta o quanto as ações afirmativas na área de educação são capazes de mudar a realidade de famílias mais pobres.

"A política de cotas muda a perspectiva de vida dos meninos e meninas de origem pobre porque a universidade é o encontro da relação entre ensino, pesquisa e extensão. Desta maneira, os alunos têm não só um ensino de qualidade, mas também acesso à bolsa permanência de pesquisa e extensão. Isso faz com que esse jovem, uma vez formado, tenha maiores possibilidades de ingresso no mercado de trabalho".

Catia pontua ainda que, em relação à evasão universitária, o número de alunos que deixa os cursos antes da formatura é maior entre os estudantes não cotistas. A pró-reitora reforça também que, com o aumento do número de alunos negros na Uerj, verifica-se a criação de coletivos para o compartilhamento de vivências e o fomento de debates sobre políticas públicas de inclusão.

"O crescimento dos coletivos negros na universidade leva à participação ativa dos alunos na formulação de políticas públicas. Muitos desses estudantes já vêm atuando em pré-vestibulares para negros ou cursos preparatórios populares", observou ela.

É o caso de Beatriz Silva de Souza, de 24 anos, moradora da comunidade do Jacarezinho, Zona Norte do Rio. A jovem, criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ingressou na Uerj pela política de cotas raciais e cursa Biologia. Ela frequentou o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) de Santa Cruz da Serra, em Duque de Caxias.

"Sempre estudei em escola pública, e os professores não falavam com a gente sobre vestibular. Quando eu entrei no Pré-Vestibular para Negros e Carentes, consegui informações, e a minha vida mudou totalmente. Lá foi onde eu ouvi pela primeira vez uma análise positiva sobre a política de cotas. Esse curso tem esse objetivo: colocar pessoas pretas dentro das universidades", diz a estudante.

Beatriz faz parte do Coletivo Preto Henrietta Lacks, que surgiu em 2015, na Uerj, e trabalha no acolhimento de alunos novos.

"O coletivo surgiu quando os alunos perceberam que a forma como ocorriam os trotes para os calouros precisava mudar, pois as atividades eram norteadas por falas machistas, racistas e LGBTfóbicas. Hoje em dia, durante o trote, o coletivo faz um trabalho de acolhimento com esses alunos. A gente debate questões envolvendo a vivência de estudantes negros e cotistas. A nossa vivência é totalmente diferente de um aluno branco, não-cotista. Querendo ou não, a presença de negros cotistas está mudando a realidade da universidade", ressalta.

O professor doutor Thiago Santos, de 36 anos, ingressou como aluno de Pedagogia na Uerj em 2004, por meio do sistema de cotas, numa época em que seus pais estavam desempregados. Ele, que foi criado em Bangu, na Zona Oeste do Rio, explica que a oportunidade mudou a perspectiva da família.

"A Uerj significou a ampliação da minha visão de mundo. Tive professores excelentes, que formam alunos como cientistas, isso é um grande diferencial. A educação muda a vida das pessoas. A Uerj é uma instituição rica e pujante, ter estudado lá me deu acesso a muitas experiências, cursos, palestras, debates. A política de cotas é fundamental para todos, para o cotista, para o não-cotista, para a universidade. Não se trata só de colocar o cotista dentro da instituição, vai muito além. Significa levar diversidade, provocar mudança de regras, comportamento, valores, conceitos, mudança nas piadas, na forma como a gente se relaciona a partir da presença de sujeitos que, até então, não eram daquele espaço", destaca.

Thiago Santos afirma que foi dentro da Uerj que se reconheceu como negro.

"Entrei na cota de pardos. Na época havia pouco debate étnico-racial. Até mesmo dentro da universidade o assunto era bem restrito, então eu demorei muito em me reconhecer como negro. Apenas dez anos depois, já no doutorado, minha ficha caiu: sou negro, não sou pardo, nem moreno, nem clarinho", observa.

Thiago chegou a atuar como professor substituto da Faculdade de Educação da Uerj, entre 2009 e 2013, e concluiu seu doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana na mesma instituição, em 2018.

"Foi um grande impacto quando retornei à Uerj como professor, as pessoas não me viam como tal, eu era muito novo, tinha menos de dois anos de formado na graduação e fazia mestrado na época, na UFRJ. Os professores eram acostumados com substitutos brancos, foi uma grande quebra de paradigmas, eu me sinto muito lisonjeado".

Campanha #UerjAntirracista

Com o objetivo de propor uma profunda reflexão sobre o racismo dentro e fora da universidade, a Uerj promoveu um evento acadêmico virtual esta semana, quando se comemora o Dia da Consciência Negra. Pesquisadores e representantes de movimentos sociais se uniram para um debate com foco em três temas: “O corpo no espaço acadêmico”, “A decolonialidade e perspectiva antirracista” e “Atitudes racistas e a ética no ambiente acadêmico e profissional”.

A conversa foi transmitida pelo canal da TV Uerj no YouTube. Vídeos com depoimentos de personalidades de destaque em suas áreas foram postados nas redes sociais da universidade, reforçando o protagonismo do negro.

Segundo a pró-reitoria de Políticas e Assistência Estudantis, Catia Antonia da Silva, a mobilização da Uerj sobre o tema não termina com a campanha. Todas essas ações integram a preocupação constante da universidade em ser mais inclusiva a cada dia, aperfeiçoando suas políticas de acesso e permanência, estimulando debates e combatendo qualquer tipo de preconceito.

A Uerj também foi a primeira universidade pública do Rio de Janeiro a criar uma ouvidoria para denúncias de vários tipos, inclusive sobre atitudes racistas e preconceituosas. As notificações podem ser feitas pelo site www.ouvidoria.uerj.br e pelo e-mail [email protected].