É chegada a hora

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Ingressei no Poder Judiciário em 1997 quando o microssistema dos Juizados Especiais estava em sua idade infantil já que a Lei regente data de 1995. Com ela amadureci profissionalmente, a vi se tornar adulta e, com pesar, vejo agora a doença atacá-la. 

A Escola processualista paulista da Professora Ada Pelegrini Grinover, embrião da Lei 9.099/95, imaginou um cenário jurídico propiciador de acesso amplo e célere pelos jurisdicionados que pretendiam a pacificação de conflitos de interesse de menor complexidade, afastando a então vetusta e formal Justiça comum. E assim se fez. Os princípios norteadores insculpidos no artigo 2º da Lei Especial traduzem o escopo de uma Justiça célere, eficiente e que privilegia a harmonização através da conciliação.  

Os Juizados Especiais surgiram de forma tímida até que os operadores do Direito entendessem a grandiosidade do rito especial em conjunto com o Código de Defesa do Consumidor como ferramenta ao combate de uma política nula aliada a pouca conscientização consumerista, num País que vivia, naquele momento, o início de uma globalização de novos produtos e serviços. 

A boa-fé objetiva do consumidor preconizada na Lei 8.078/90 caminhava ao lado do poder dado ao consumidor de provocar o Estado-Juiz à resolução de suas demandas cotidianas, tendo o Poder Judiciário Fluminense se aparelhado eficientemente com Juizados Especiais de bairros, onde o cidadão postulava, sem a necessidade de interveniência de um profissional do Direito nas causas de até 20 salários mínimos, e lhe era entregue a prestação jurisdicional, fosse por composição amigável, fosse por uma resposta rápida (sentença) do Juiz de seu bairro. Vivíamos a juventude fresca dos JECs, onde à época se percebia no olhar incrédulo do cidadão até então desacostumado, que seus direitos seriam observados e que se a sua geladeira quebrasse dentro do prazo de garantia, o grande varejista seria obrigado a trocá-la, sob pena de arcar com o ônus de uma indenização compensatória, sob a dúplice penalidade punitiva e pedagógica e de uma multa diária imposta muitas vezes por tutela antecipatória de mérito. Eram tempos gloriosos! 

Enfrentou-se tempestades nesses mais de 20 anos. A explosão de demandas como àquelas dos planos de expansão da antiga TELERJ, que vendeu milhares de linhas, sem qualquer investimento, assoberbou os Juizados de ações. Com o vencimento dos prazos de instalação dessas linhas fixas, a antiga TELERJ deixou de entregá-las. Nos idos dos anos 90 os telefones fixos ainda valiam considerável valor econômico e faziam parte, inclusive, dos testamentos e partilhas de bens nas heranças. O consumidor estava assistido. O microssistema funcionou e, na inexistência de ação coletiva eficaz bem como de agências reguladoras eficientes, o Juizado Especial deu vazão ao clamor jurisdicional, respondendo de forma enérgica e fazendo com que a Concessionária de Serviços Públicos instalasse as linhas telefônicas fixas vendidas e não entregues, pagando vultuosas multas (astreintes), muitas vezes em valores superiores a 50 vezes o valor de mercado das linhas telefônicas. Sim, o sistema imaginado pelo Legislador infraconstitucional funcionava! Outras demandas de massa vieram e, mais uma vez, o Estado-Juiz se fez presente respondendo de forma rápida e eficaz, como imaginado e positivado na Lei especial. 

Passados esses primeiros 20 anos, veio a chaga! Explico: A isenção de pagamento de custas em jurisdição inicial aliado a uma explosão de captação de clientela consumidora, a uma enxurrada de produtos e serviços ofertados pelas fornecedoras e ainda às defesas genéricas das Empresas que muitas das vezes estão divorciadas das realidades fáticas dos autos, facilitaram o grande mal que se abate nos dias atuais em todos os JECS dos Estados, a fraude!!! 

Desde mentira processual, passando por ausência de pretensão resistida e até mesmo falsificação de documentação e mesmo falsificação ideológica, havendo inúmeros casos até mesmo de ações ajuizadas sem que os consumidores sequer saibam de sua existência, revelam uma praga daninha difícil de ser combatida. 

Os diversos modus operandi dificultam, a primeira vista, a detecção de uma fraude, mesmo para o Magistrado mais cioso e atento. Mecanismos de informática tem sido disponibilizados para conter a demanda predatória e falsa, mas o olhar atento do Poder Judiciário precisa e deve, sob pena de desmantelamento do microssistema, identificar, apurar e punir de forma severa tais desvios de conduta e ai é que a participação do MP e da OAB é primordial. 

Uma OAB participativa e menos corporativista com processos éticos levados a cabo para a defesa da própria instituição de classe aliado a um Ministério Público mais atuante para a devida persecução de eventuais delitos praticados por partes e também por diversos causídicos como os crimes de estelionato judicial comungariam com o atual esforço judicial de se conter demandas artificiais. Lastimável que a presunção de boa-fé objetiva do consumidor positivada em Lei há quase 30 anos no Código de Defesa do Consumidor perca sua pujança para virar consectário relativo. 

A aposta na falta de defesa técnica específica em cotejo com uma distribuição mensal gigantesca de cerca de 1700 processos distribuídos em cada Juizado Especial, tornou campo fértil para todo o tipo de fraude, desafiando outro tratamento a ser dado aos processos em trâmite nos Juizados Especiais do Estado. Combater demanda artificial não pode virar preliminar de mérito em sede de Juizado. Todavia, olvidar e não perseguir o real consumidor, a verdadeira demanda é não prestar a jurisdição na assepsia da palavra. Infelizmente há quase mais joio do que trigo, o que desvirtua a concepção natural da Lei. 

É chegada a hora de um compromisso irrestrito de combate a fraude. Sociedade civil, OAB, Ministério Público, Polícia e por óbvio o Poder Judiciário precisam se unir para que o verdadeiro litigio ou mesmo a verdadeira pretensão resistida seja o objeto das ações judiciais. O inchaço da máquina pública não permite e não cede lugar a fraude, até mesmo pela razão mais óbvia, a econômica. O JEC é gratuito, portanto o povo é quem paga por sua existência e manutenção. Combater a fraude é exercer a cidadania e traduz o verdadeiro sentido da Justiça. 

É chegada a hora de dar um basta. Basta! A chaga tem que ser eliminada.

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