Ilustres anônimos

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Não importa se é anônimo; quem quer que se aproxime de nós, sempre imediatamente é catalogado, segundo registros que mantemos armazenados na memória. São conceitos prévios, tomados de figuras que passaram por nossa história e a impregnaram tanto, que não conseguimos continuar nossa viagem sem levar na bagagem esse peso, por vezes, acabrunhante. 

Os evangelhos estão cheios desses anônimos, que se achegaram a Jesus com ideias preconcebidas sobre Ele, frutos de anteriores encontros marcantes. Alguns apareceram nas horas extremas da Paixão, e entraram e saíram daquele palco crucial da História, na qualidade de ilustres anônimos.

Entre eles, chamam a atenção os soldados e o povo que passava. Afinal, não há nada mais cruel do que o cuspe anônimo.  

Os soldados foram descritos como brutamontes, que cuspiram, deram socos e bofetadas, escarneceram, vestiram Jesus de trapos vermelhos, cingiram sua cabeça de espinhos. Mas sempre, anonimamente. Como Jesus não tinha mais nenhuma dignidade, eles descarregaram sobre Ele toda a frustração e os desejos de vingança alimentados nem se sabe exatamente contra quem. 

É que aqueles homens também não tinham nenhuma dignidade. 

Era gente mal paga, com uma vida miserável à mercê de quem os comandasse. Eles odiavam o serviço, foram habituados a ser maltratados pelos poderosos, necessitados de vingança. Talvez também já tivessem sido esbofeteados e punidos, injustamente. O Império Romano era rigoroso com seus soldados; e eles alternavam servilismo respeitoso com desejos de vingança. 

O povo que passava por ali não era diferente.

O palco da crucifixão, geralmente, era escolhido na entrada da cidade, onde os crucificados ficavam pendurados em andaimes baixos, expostos às moscas e às cusparadas. Quem passasse poderia descarregar a mesma ânsia de vingança que sempre habita o interior dos injustiçados; quanto mais anônima, maior. 

É provável que alguém que passasse por ali tivesse conhecido Jesus ou ouvido falar dele. Seja como for, é difícil não perceber um artifício de racionalidade, no pensamento de quem tivesse acabado daquela forma, alguma coisa deveria ter feito para merecer aquilo.

Atrás desse raciocínio rondava também uma ideia antiga e preconcebida sobre Deus: quem estivesse do lado de Deus, triunfaria; se não triunfou é porque Deus não estava com ele. 

Aquele homem havia acreditado no que pregava, mas as suas palavras eram estranhas ao grande povo. Naquela hora, ficava claro para eles, que eles, afinal, tinham sua razão. A vingança de quem não quer entender revela, atrás do anonimato, o desejo de ser entendido ou amado.

Fico pensando naquele jovem que, quando agarrado, largou o lençol de que estava coberto e fugiu nu (Marcos 14,51). Quem era, e por que foi mencionado? Parece uma figura emblemática de todos os ilustres anônimos que, no fim, ficam ou fogem, sem deixar rastro. 

As semelhanças nunca serão só meras coincidências.

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