Por Dom José Francisco: Palavras nas mãos

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Certa vez, num curso, o professor mostrou a Bíblia e perguntou: O que eu tenho nas mãos? 

Choveram respostas, mas a resposta esperada não veio e a pergunta se manteve. No fim, ele mesmo precisou responder que o que tinha nas mãos era um livro, melhor, eram muitos livros, na verdade, 73 livros de uma pequena biblioteca que, se escrita em pergaminho, precisaria de um salão para ser guardada. E que, no entanto, cabia ali, nas mãos dele. (Lembro que a palavra Bíblia, em grego, significa livros.)

Numa palavra, então, o que ele tinha em mãos eram palavras, de um magnífico texto em cartaz há, pelo menos, 3.000 anos. Nenhum texto dura tanto tempo, a menos que tenha o que dizer. 

Em setembro, as comunidades católicas se debruçam de forma especial sobre a Bíblia; neste ano, sobre o Livro da Sabedoria. Neste mês, quero ocupar esse espaço com uma questão que lateja sob tudo o que se possa dizer da Bíblia: na hipótese da história humana ter um porvir, além da repetição banal e cíclica a que estamos condenados, qual seria?

Da primeira à ultima palavra, é dessa questão que a Bíblia trata, e é a ela que seus escritores se voltam em busca de respostas.

Os escritores da Bíblia são um caso interessante: eles não andaram muito, sequer conheceram o mundo. Muitos viveram num pequeno território que, se colado ao mapa-múndi, mais parece um selo; se preso a uma tela iluminada, não passaria de um pixel. 

No entanto, se esses escritores e seus textos nos falam até hoje, se até hoje suas vozes continuam afinadas e são ouvidas, é porque tiveram a suprema aptidão de servirem-se de pequenas recordações de seu mundinho natal para criarem um mundo maior, capaz de nos persuadir da verdade e da autenticidade daquilo que Leon Tolstói disse: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O mundo da Bíblia acrescenta-se ao nosso, ajuda-nos a entender melhor o que se passa ao redor, completa nossas vidas acrescentando a elas o que, por si mesmas, elas jamais teriam ou seriam.

Por isso, quando ouço alguém menosprezando a literatura bíblica, argumentando que ela não é fiel aos determinismos históricos, sinto o impulso de fazer notar que, para começo de conversa, como qualquer grande literatura, a Bíblia tem, há 30 séculos, a capacidade de transformar qualquer realidade pela mágica do estilo, e de mudar essa realidade em outra realidade, algo construído pela impalpável e evanescente matéria da palavra. Uma matéria que é sensação, associação, fantasia e sonho, antes de ser geografia e história. 

Foi isso que lhe garantiu sobrevivência. 

Afinal, é dessa mesma matéria que é constituída a vida. Não da força imprevisível que anima o mundo concreto com a precariedade intensa de um vaivém instável, mas da força do brilho de que são dotados os objetos quando revestidos de palavras. 

O que tenho nas mãos? – perguntou o professor.

Palavras, você tem palavras nas mãos, seria a resposta, as palavras que construíram o mundo.

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