Religião soft?

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O Papa Francisco tem encantado multidões com seu jeito e suas homilias. Dia desses, ele falou sobre a identidade cristã, tema muito caro num mundo cada vez mais fragmentado. Gostaria de me inspirar nele, hoje.

No final do milênio, ainda no século passado, o engenho humano desenvolveu a fricção do átomo e sua energia destrutiva foi lançada sobre cidades populosas. Antes disso, havia inventado a penicilina. Depois disso, pôs os pés e passeou na Lua, decifrou o próprio código genético, fotografou sua própria galáxia, fabricou uma ovelha em laboratório, criou o ciberespaço e uma cultura que não cabe em si.

Pelo andar da carruagem, parece que quase tudo ficou permitido. Guerras e violações, crimes ambientais, homens-bomba, tráfico humano, a desnorteante radicalização das possibilidades de transgressão. A vida se banalizou, a ponto de não valer um par de tênis.

Mas a religião sobreviveu à onda secularizante dos últimos séculos. Ao contrário dos prognósticos, ela não morreu, e parece estar mais presente do que há 100 anos. Configura comportamentos, reordena paixões, estabelece novas formas de solidariedades. Ela se transformou, se moldou, e se lançou com vigor renovado a um mundo que parecia correr à sua frente. Hoje, ela reordena configurações morais e políticas. Cria, enfim, uma nova identidade.

Foi justamente essa questão da identidade que instigou S. Paulo nas duas cartas que escreveu aos coríntios. A comunidade de Corinto era difícil, e Paulo foi radical. Ele disse que o ensino que nos foi dado não é feito de “sim-e-não”, mas apenas de “sim”. E que, dessa estrada, ninguém está fora, porque nosso testemunho é um caminho que vai da ambiguidade à verdadeira identidade. Foi para isso que Deus nos confirmou em Cristo para nos dar o dom da identidade.

Ou seja, o que Paulo falou e Francisco confirmou na homilia é que, na experiência cristã, não há lugar para o “quase”. O “quase” discípulo, o “quase” santo, o “quase” disponível para a instauração do Reino... Esse vai ficar “quase” fora, se não ficar fora por inteiro. Precisamos do Espírito porque ele é a garantia que nos falta para seguir adiante. A identidade cristã não é uma religião “soft”. É uma identidade que se pesa pelo testemunho. Precisamos que nossa identidade seja clara e disponível a quem se aproximar de nós.

Mas o testemunho cristão não é só uma ideia bonita. Não podemos vivenciar um tipo de religião aerificada, “suflair”. Nossa tentação será a de sempre camuflar o testemunho nas facilidades que a mundanidade nos empurra.

Em nome dessa mundanidade, pessoas alargam de tal modo a sua consciência que ali dentro cabe tudo – diz o Papa. Mas aí, o sal perde o sabor e a luz deixa de brilhar. Quando tudo vale, algo ainda vale? Deus nos levou da ambiguidade à certeza, à concretude da encarnação e da morte redentora do Filho. Esta é a nossa identidade. Judas vendeu a dele por 30 moedas. E a nossa? Tem preço?

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