Dois garotos pobres. Dois destinos diferentes

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Vivi minha infância na década de 80. Meu pai, militar da Marinha, deu duro para que eu e minha irmã tivéssemos uma educação decente. Naquela época, estudávamos em escolas particulares porque as Forças Armadas subsidiavam metade das mensalidades.

Morávamos em um condomínio residencial da Marinha em São Gonçalo, que fica nas imediações de bairros considerados de risco pela polícia do Rio de Janeiro. Lembro de alguns dias daquele tempo, quando caminhava para a escola, nos quais corpos eram “desovados” próximo ao condomínio. 

Assim que fui morar ali, com 10 anos de idade, meus camaradas de peladas nos campinhos das redondezas eram os garotos que moravam por ali. Para nós, crianças, não havia impedimentos para sermos amigos da gurizada que morava no morro. Não. Eram os meus amigos do futebol, que riam comigo e faziam parte daquela infância despreocupada.

Um deles era um moleque bom de bola, de riso franco, que falava pelos cotovelos e que tinha o peculiar apelido de Bica. Lembro que ele implicava muito por eu ser meio gorducho naquela época. Dizia que só deixavam eu jogar porque eu era o dono da bola e das camisas do time. Verdade. Ele estava bem certo.

O tempo passou e deixamos a infância para trás. Eu, como não havia nascido em berço esplêndido nem contava com “padrinhos” de peso, desde cedo carregava a certeza de que apenas estudando eu poderia ser alguém na vida. E assim busquei fazer. Sempre colocando os estudos à frente de tudo, entrei para a Escola Naval, de onde saí para me transformar no Professor de Física e Policial Federal.

Há alguns anos, já chefiando uma legendária unidade tática da Polícia Federal, retornei à região de onde passei aquela parte da minha vida. E não foi para matar saudades. Nossa missão era identificar um paiol de armas do tráfico de drogas. Um planejamento detalhado foi feito e a equipe partiu para lá.

Durante longos minutos, nossa unidade trocou tiros com bandidos armados de fuzis e metralhadoras, às duas horas da tarde, em uma área onde a maioria dos moradores era composta por pessoas de bem. No final, conseguimos romper a resistência dos traficantes e chegamos ao objetivo. Não sem perdas humanas. 

Um dos soldados do tráfico, que atirava em nós, foi alvejado durante o tiroteio e tombou sem vida. Quando o perímetro de segurança foi estabelecido, fui verificar o corpo do bandido baleado e, para minha surpresa e uma dor imensa no coração, reconheci o velho camarada Bica. Sim. Ele mesmo, que sorria sem parar, que me “zoava” por eu ser gordinho e por ser o “pereba” da turma.

Durante longos segundos, fiquei estático observando aqueles olhos sem vida. Um misto de revolta e tristeza tomaram conta de mim. Afinal, não havia abismos entre nós. Tínhamos as mesmas chances. Estávamos no “mesmo barco”. Que escolhas haviam levado meu “brother” para um fim como aquele? Difícil aceitar. Depois soube que outros daquela época sucumbiram. Nunca tive ideia do que os guiou até o fim trágico. Só sei que eles escolheram o lado errado nessa guerra.