Uma experiência é sempre qualquer coisa da qual saímos transformados. Se tivéssemos de escrever algo para comunicar aquilo que já pensamos, não teríamos coragem de fazê-lo. A gente escreve apenas porque ainda não sabe exatamente o que pensar sobre esta ou aquela coisa. O texto que escrevemos nos transforma, transforma aquilo que pensamos e transforma quem lê.
É assim a escuta. A escrita é prontidão. A escuta é prontidão. Penso nos atletas, no início da partida, prontos, à espera do sinal. Aquele que escuta constrói uma vigilância interior que lhe permite atuar como uma diligência permanente. É a qualidade da escuta que determina a qualidade da resposta.
O ouvido guarda uma memória espiritual. São Lucas conta que Maria, Mãe de Jesus, guardava no coração tudo o que ouvia, e fala isso duas vezes; repete, tamanha a importância que dá ao fato.
Nossa cultura já não escuta mais. Tudo é avalanche. Quem quiser escutar terá de recuar diante do frenesi das informações desconexas. Tudo hoje é atordoante. E isso gera uma perigosa anestesia na nossa percepção. De tanto falar sobre os escândalos do país, está acontecendo de as pessoas já não ouvirem mais. Os escândalos tornaram-se tão atordoantes que já se ouve gente dizendo que nem liga mais a TV.
Vocês conseguem perceber como isso é perigoso?
Precisamos parar. É urgente parar. Parar para ouvir, ver, sentir e discernir. Por vezes, o que nos aproxima da autenticidade é o continuar. Por vezes, é o parar. E só sabemos o que realmente fazer, no exercício paciente da escuta.
No entanto, jamais acontece uma escuta de nós mesmos sem a coragem do esvaziamento. Não existem condições ideais para isso acontecer. Em nenhuma parte do espaço ou do tempo existe aquilo que chamamos de silêncio. À nossa volta tudo é som. Da mesma forma como não existe frio; à nossa volta tudo é calor. A geladeira não produz o frio, ela põe o calor do lado de fora. Também não produzimos silêncio, a não ser colocando o barulho do lado de fora.
Franz Kafka traduziu isso no esplendor da literatura. “Nunca conseguimos estar suficientemente sozinhos quando escrevemos, nunca há silêncio suficiente à nossa volta quando escrevemos, até mesmo a noite nunca é noite o suficiente”. Aquilo a que chamamos de silêncio só se torna real e efetivo através de um processo de despojamento interior. Assim como a geladeira se despoja do calor, é preciso nos despojarmos do barulho.
Até porque, aquilo que chamamos de silêncio não tem nem valor nem sentido nem existência por si próprio. Nós o produzimos porque precisamos dele, com a urgência com que o afogado precisa de um galho, com a urgência com que a terra seca precisa de chuva. Aquilo que chamamos silêncio só tem sentido quando prepara a palavra e porque prepara a palavra.
A palavra é o calor. Mas sem o silêncio que a antecede e prepara, ela queima como incêndio perigoso e vira apenas cinza e barulho.
O silêncio e a palavra
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