A versão dos Tupinambás

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No local que hoje fica a cidade de Niterói, existiam quatro tribos: Keriy, Akaray, Morgujá-uasú e Kurumuré.

Foto: Marcelo Feitosa

Antes da chegada dos portugueses ao Rio de Janeiro, no século XVI, os habitantes da região eram os índios tupinambás, povo indígena que povoava áreas do litoral brasileiro. Ou seja, a história da cidade começou muito antes da chegada dos europeus. Porém, geralmente, ela só é contada a partir do momento de “descoberta” pelos portugueses. Procurando preencher essa lacuna, o jornalista Rafael Freitas da Silva escreveu o livro “O Rio antes do Rio”, que busca resgatar a memória das terras litorâneas da Baía de Guanabara quando os nativos ainda eram os únicos moradores do local.

O carioca Rafael Freitas da Silva começou sua pesquisa após perceber que nos livros de História não se fala sobre antes da chegada dos portugueses ao Rio de Janeiro.

Foto: Marcelo Feitosa

A obra explica as curiosidades da época e conta como eram os costumes dos indígenas que viviam nessa região. Rafael buscou recuperar uma memória fundamental, mas que não é muito conhecida. 
“Nunca nos falaram (nos livros de História) que ‘carioca’ era uma grande aldeia indígena, assim como nomes de bairros como Irajá, Pavuva, Taquara, Icaraí... Como nós nunca soubemos disso? Parece que existe uma cultura histórica que privilegia apenas as ações dos europeus em nossa história. São eles que são louvados e não os nativos que resistiram à colonização”, explica Rafael.

Para o autor, inclusive, os índios tupinambás influenciaram diretamente em hábitos que os brasileiros possuem. 

“Precisamos entender que foram os nativos que ensinaram o europeu a viver na terra tropical. Aqui se toma banho, gostamos de nadar nas ondas do mar,  gostamos muito de festa, de comer carne e raízes, não gostamos de perder, somos guerreiros, não desistimos nunca. Todas essas características podem ser transferidas aos tupinambás da Guanabara e do resto do Brasil”, afirma.

A ideia do livro surgiu quando o carioca, criado na Zona Norte, quis escrever uma obra sobre a história do Rio de Janeiro para as comemorações dos 450 anos da cidade. Contudo, Rafael não queria contar sobre algo no qual não havia novidade nenhuma. Por isso ele começou a pesquisar vários temas sobre a memória do Rio de Janeiro e encontrou por acaso o livro “Viagem à Terra do Brasil” (1574), do calvinista Jean de Léry, no original em francês.

 “No livro, Léry relata as andanças por um Rio totalmente indígena. Nesta obra, descobri as ‘listas’ de aldeias do Rio de Janeiro... E fiquei meio chocado! Como assim? Como nunca ouvi falar dos nomes dessas aldeias, seja na escola ou em livros de história? Por quê? Por que ninguém nunca escreveu sobre isso? E reparei que havia essa lacuna na nossa história. Assim resolvi mergulhar de cabeça nesse tema!”, assume Rafael.

  Para a surpresa do autor, de todos os livros que já foram lançados sobre a história da fundação da cidade, nenhum falava sobre os índios que viviam nessa terra antes da chegada dos europeus. 

“Os escritores passam por esse tema como se fosse apenas um detalhe a presença (e a resistência) dos tupinambás do Rio de Janeiro e logo passam a contar as proezas de Estácio e dos portugueses que fundaram a cidade. Percebi que havia um grande desconhecimento sobre o Rio indígena e que a ‘visão’ dos nativos que aqui viviam nunca havia sido estudada”, salienta Rafael.

Após pesquisar três anos e meio em livros do período quinhentista francês e português, o autor descobriu que nas terras da cidade havia mais de 20 aldeias. No entorno da Baía de Guanabara havia mais de 80. 

“Elas eram superpovoadas. Algumas, como relatam as fontes francesas, com mais de 10 mil índios. É como se existisse uma cidade tupinambá anterior à nossa metrópole, cujas áreas e caminhos que ligavam umas às outras propiciaram a ocupação da terra pelos europeus. É como se existisse uma civilização comparável aos incas do Peru e aos astecas, no México, e que nós nunca procuramos saber mais”, analisa.

 O livro ajuda a esclarecer também como eram as aldeias do entorno da Baía de Guanabara. No local que hoje fica a cidade de Niterói, existiam quatro tribos: Keriy, Akaray, Morgujá-uasú e Kurumuré. A primeira era localizada à direita de quem entrava na baía, onde hoje é o bairro de São Francisco. O nome significa “Rio das Ostras”, pois ali existia um rio de águas calmas, ideais para a proliferação desse tipo de molusco. Já onde hoje é localizado o bairro de Icaraí, ficava a aldeia de Akaray. Akará (ou Kará) era nome dado ao peixe conhecido até hoje por acará, animal de água doce que vivia na região.

A terceira tribo recebeu o nome de “maracujá-grande” pelos tupinambás. Segundo o livro, a hipótese mais provável é que era tão grande a abundância desse grande fruto que acharam por bem colocar como nome da aldeia. Além disso, o cacique possuía o mesmo nome, “Morgujá-uasú”. Ela era localizada próxima ao local que hoje fica o centro da cidade. A última aldeia ficava onde hoje é o bairro do Barreto. Kurumuré significa tainha, peixe comum na Baía de Guanabara.

Além de decifrar Niterói antes da chegada dos portugueses, o livro conta sobre a história de Araribóia e o papel que desempenhou na conquista da Guanabara.
 
“Araribóia não era de Niterói e sim da tribo dos maracajás da Ilha do Governador. Ele foi o principal aliado dos lusos contra o restante das tribos tupinambás do Rio de Janeiro, e também de Niterói, onde pelo menos as tribos principais da cidade (Keriy, Akaray, Morgujá-uasú e Kurumuré) eram seus inimigos”, explica Rafael.

 Segundo o autor, Niterói também é de origem tupi e, possivelmente, era o nome que os índios davam a essa parte da baía, pois significa uma referência a um “porto sinuoso” em relação à forma das enseadas e praias da margem direita da Baía de Guanabara. 

“Ou seja, a história de Niterói é também a história desses índios e não só de Araribóia”, pontua.

Rafael é incisivo ao dizer que a história dos indígenas que habitavam o local antes da chegada dos portugueses deveria ser ensinada nas escolas.
 
“Acho que isso ainda não acontece porque antes não existiam obras para se consultar e aprender sobre isso. Os tupinambás amaram essa terra mais que tudo, lutaram praticamente até o último homem por ela e não se deixaram escravizar. Nós também devíamos aprender e também seguir esse exemplo: amar nossa terra mais que tudo, cuidar dela com carinho, preservar nossos rios, matas, praias e, principalmente, não nos deixar escravizar por forças que a destroem, que a usurpam, que a exploram e a deixam impraticável. É muito triste ver que transformamos o paraíso tupinambá num lugar cinzento, poluído e degradado (e muito mais violento)”, finaliza. 

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