Duelo entre o bem e o mal

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Tamires Nascimento colaborou com a adaptação e vive Rosa na peça

Foto: Luan Dutra/Divulgação
 

Trazendo ao palco a dualidade entre o bem e o mal, o espetáculo “Deus e o Diabo na Terra do Sol” apresenta uma leitura teatral do filme homônimo de Glauber Rocha, lançado em 1964. O longa é o principal representante do movimento Cinema Novo, que elaborou uma nova forma de pensar e fazer cinema. Adaptado por Tamires Nascimento e Jefferson Almeida, também responsável pela direção da peça. Os amigos partiram do argumento de Glauber para escrever o espetáculo, épico da Definitiva Cia. de Teatro, que estreia a sua primeira temporada em Niterói no dia 1º de abril, às 21h, no Teatro da UFF, em Icaraí.

Em meio a referências culturais e históricas do Nordeste brasileiro, a montagem traz no centro da trama a história do casal sertanejo Manoel (Guga Almeida) e Rosa (Tamires Nascimento). Manuel, que trabalha como vaqueiro, é explorado pelo coronel Moraes (Raphael Marins), dono das terras em que vive e detentor do poder político na região. Em dado momento, em defesa de seu orgulho, dignidade, ou qualquer coisa que o valha, ele mata o coronel que tenta extorqui-lo. O vaqueiro passa a ser perseguido pelos homens do coronel, os jagunços, obrigando-o a fugir com a sua esposa. Os dois se juntam aos seguidores do pregador Sebastião, considerado beato pelos seus fiéis, que promete o fim do sofrimento através da religiosidade ligada a um catolicismo místico. “A peça conta a história de um nordestino peão de fazenda superexplorado. E é bom lembrar que o tempo inteiro essas são as referências que temos. Em uma das primeiras imagens da mãe desse nordestino, que aparece no filme, ela está com um terço rezando. Depois que ele já não tem mais esperança é que acontece o fato inicial do filme, quando ele assassina o coronel Morais e, por conta disso, precisa fugir. Pouco antes, surge nele uma esperança que vem da fé. Ele está chegando em casa para fugir e assiste uns beatos passando em procissão. Ele entende aquilo como um sinal”, analisa o diretor Jefferson. 

“Deus e o Diabo na Terra do Sol” traz a dualidade dos personagens que, no constante conflito entre o bem e o mal – Deus e o Diabo –, lutam pela sobrevivência de suas vidas marcadas pela pobreza e tangidas pela força da religiosidade. A teia de acontecimentos – pessoais e políticos – findam por elaborar uma fotografia panorâmica de um período da história do País por meio da “dramática aventura de um homem que se perde entre um deus negro e um diabo louro, guiado por uma testemunha cega e perseguido pela morte”, nas palavras do próprio Glauber Rocha. Na decorrência dos seus sofrimentos, os personagens são capazes de matar, inclusive crianças. Segundo Almeida, nenhum deles, assim como na vida real, é bom ou mau, tendo, assim, seu senso de oportunidade e de justiça.  “O Glauber opta por não criar vilões e mocinhos. Nós trabalhamos com personagens que você pode encontrar na vida. O Manuel é um sujeito que acorda de manhã, trabalha, dorme, sustenta a família, precisa comer, precisa tomar banho. Quando se sente injustiçado e humilhado, ele responde a isso assassinando uma pessoa. Eu não posso dizer que essa atitude dele é  uma atitude má, porque nós estamos dentro de um universo em que humilhar e ofender alguém, tirar dessa pessoa todas as chances que ela tinha de sobreviver, necessita de uma resposta”, avalia o diretor. 

Jefferson ainda complementa dizendo que o coronel Moraes poderia ser o vilão da história já que, sendo rico e poderoso, usurpou na sua exploração tudo o que o Manuel podia ter de esperança: “Mas é injusto dizer isso porque os personagens têm as suas outras faces que a gente não conhece, que não são colocadas em cena. São personagens que precisam lidar com o bem e o mal e ser bons e maus na mesma medida e sem julgamento”. 

Em meio a referências culturais e históricas, a temática religiosa perpassa o espetáculo. De acordo com o diretor, a peça usa o lugar da religiosidade e da fé como uma possibilidade de resistência, mais do que como um lugar de salvação para o Manuel.  “A luta dessa religiosidade é a mesma luta do cangaço. Tem um desdobramento de um mote religioso específico da religião que aparelha, por exemplo, na figura de um beato cristão (Santo Sebastião) à figura de dois outros beatos cristãos reais, que é o padre Cícero e o Antônio Conselheiro, além de líderes religiosos, líderes revolucionários. A religião na peça não é tratada puramente como religião, é tratada como um lugar de resistência, uma força política. Tem todo esse lugar da religiosidade de que te acende uma chama interna e, por conta dela, você tem mais força para ir a lugares, para fazer coisas, para engendrar ações, mas é antes de tudo um lugar de resistência”, ressalta Jefferson.
 

O espetáculo mostra a luta pela sobrevivência numa terra hostil

Foto: Phillipp Lavra/Divulgação

Para a produção da peça, o diretor optou por usar o roteiro do longa e não o filme em si. Segundo ele, essa escolha facilitou a realização da montagem, já que se trabalhava com o material escrito. “O meu desafio era um pouco maior enquanto encenador, do que como adaptador porque os diálogos são absolutamente os mesmos. O diálogo do filme é o mesmo da peça. O meu trabalho, antes de ir para a sala de ensaio junto com a Tamires Nascimento – minha assistente de direção – era já um pouco de propor a encenação e, a partir dessa ideia, enquadrar o roteiro”, explica.

Fundada em 2008, a Definitiva Cia. de Teatro nasceu com o nome de Provisória, abrigada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Em 2011, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” estreou em âmbito universitário. A montagem foi premiada em 2012 na IX Festa Internacional de Teatro de Angra (Fita) nas categorias de Melhor Diretor e Ator para Jefferson Almeida. 

Segundo o diretor, o espetáculo representou um grande desafio para o grupo, que tem como foco estudar o papel da música na cena e faz da produção dos seus espetáculos objeto de pesquisa. “Foi desafiador trabalhar com a obra do Glauber Rocha, um cineasta importante que levou o cinema brasileiro para o mundo. ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ é um filme antológico, quase intocável. É um material que exige trabalho e respeito. Além do mais, outro desafio era juntar à obra a música que o Sérgio Ricardo compôs para o filme de forma que estivesse em cena de maneira potente, assim como o texto e os diálogos do Glauber e do Paulo Gil Soares”, evidencia. 

Apesar da peça ser uma adaptação de um filme com mais de 50 anos, para Jefferson o espetáculo é atemporal e traz um significado que não é datado. “Nós estamos falando de injustiças sociais, tolerância e intolerância religiosa, sincretismo, fé, e estamos falando, sim, de política. Afinal, a última fala do Couriço na peça é ‘Mais forte são os poderes do povo’. Acho que hoje, neste momento político em que o Brasil está, a peça fala mais do que nunca. Ela passa o marca-texto sobre uma das camadas sociais menos favorecidas. Mas já nos apresentamos num momento distinto, em que outra camada ganhava mais força. Desde que nos entendemos e, temos notícias disso, há esse domínio do empregador sobre o empregado, do rico sobre o pobre. Enquanto isso estiver em pauta, o espetáculo, não só o nosso, como outros, como o filme, o roteiro, comunica, tem lugar, tem função”, finaliza Jefferson.