Entre mãe e filho

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Anna Muylaert aborda em seu novo trabalho a relação de um jovem com sua “nova” família e a fluidez dos adolescentes

Foto: Gleeson Paulino / Divulgação

A câmera acompanha o jovem Pierre de costas em uma festa, onde começa a beijar uma garota e termina no banheiro tendo relações sexuais com ela. Ao abaixar a calça, uma surpresa: o menino usa uma calcinha fio dental. A cena surpreende não só por ser inusitada, mas também por ser parte do novo longa-metragem de Anna Muylaert, diretora de “Que horas ela volta?”, que retorna em uma nova obra mais ousada e rebelde, explorando principalmente a relação de um jovem com sua “nova” família e a fluidez dos adolescentes.

O longa-metragem acompanha o dilema de Pierre (Naomi Nero), que descobre ter sido sequestrado por sua mãe Aracy (Dani Nefussi) há 16 anos

Foto: Gleeson Paulino / Divulgação

O longa “Mãe só há uma” tem pré-estreia marcada para terça-feira, dia 19, às 19h30, no Cine Arte UFF, no “Cineclube Quase Catálogo”, que busca valorizar a história de diretoras mulheres.

Logo no início do filme, conhecemos a família de Pierre, que vive em um bairro de classe média na cidade de São Paulo. O jovem pinta as unhas, tem um visual “glam rock” e mantém uma boa relação com sua família, até o dia em que descobre que foi roubado na maternidade e precisa morar com sua família biológica. O roteiro é adaptado livremente da história de Pedrinho, um garoto encontrado 16 anos após ter sido sequestrado de sua mãe biológica. Para Anna, o caso pode ser interpretado como uma metáfora da juventude.

“Essa história é muito simbólica, mesmo que seja um caso singular. Ela representa a quebra da casca do ovo, quando o adolescente começa a agir de uma forma que os pais não gostam. Aquele amor incondicional passa a ser um amor restritivo. Por isso, Pierre transita entre duas famílias, é uma metáfora”, filosofa.

A narrativa é construída do ponto de vista de Pierre (Naomi Nero), que não enxerga Aracy (Dani Nefussi), a mãe que lhe sequestrou, como culpada, porque ela foi a principal referência materna durante toda sua vida. Quando ele é obrigado a voltar para sua família biológica, em um bairro de classe média alta da cidade, encontra uma mãe (Glória, também interpretada por Dani Nefussi) que tenta moldá-lo àquele novo estilo de vida. A ideia do protagonista rebelde, que quebra com os padrões de gênero, veio como elemento final no filme, e foi inspirado pela cena noturna paulistana.

“Depois de 20 anos em casa cuidando dos filhos, voltei para a noite de São Paulo e encontrei um cenário completamente diferente de quando eu ia. A questão de gênero está muito mais fluída. Na minha época era muito binário: homem, mulher, gay, hétero. Mas, hoje, as pessoas estão vivendo em outro estágio de liberdade e construção de liberdade. Ele (Pierre) está criando um gênero próprio”, explica Anna.

A comparação entre “Que horas ela volta?” e “Mãe só há uma” é inevitável. Enquanto o primeiro é mais linear, o novo longa opta por uma câmera mais frenética, que aproxima nos detalhes da cena. A mobilidade serve como uma “extensão da família”, que atua de forma conjunta com a construção da identidade do protagonista. O desenvolvimento da adolescência acontece junto com a mudança para uma outra casa e a adaptação em um lar de “estranhos”. Acostumado com a liberdade, Pierre agora faz parte de um núcleo familiar “conservador”, onde pai, mãe e filho passam fins de semana jogando boliche e jantam em restaurantes caros, o oposto do que ele imaginou para si. Quando morava com Aracy, tinha privacidade, em uma relação silenciosa. Agora, precisa se explicar sobre seus hábitos (pintar as unhas, usar roupas femininas, etc).

Assim como “Que horas ela volta?”, “Mãe só há uma” foi premiado em Berlim, dessa vez na 30ª edição do Teddy Awards, uma mostra independente do Festival de Berlim de temática LGBT.

Diretora e mulher – Em 2015, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) publicou um relatório que mostrava como as mulheres ainda são minoria no mercado audiovisual. Dos 128 filmes brasileiros lançados em 2015, apenas 19 (14,8%) foram dirigidos por mulheres. Quatro desses longas entraram para o ranking de maiores bilheterias do ano, incluindo “Que horas ela volta?”, da própria Anna. Nos EUA, buscando diminuir a diferença de sexos, a Academia de Hollywood convidou cerca de 208 mulheres (incluindo Anna) para compor a comissão responsável pelo Oscar, formada por 683 especialistas. Antes, 75% da Academia era formada por homens e apenas 25% por mulheres. Para a diretora, o preconceito não está só na sétima arte.

“Chegamos a um ponto em que as mulheres perceberam essa desigualdade e estão lutando contra isso. A mostra (Quase Catálogo) serve para isso: vamos mostrar que a gente não é café com leite”, destaca.

Com sete filmes na carreira, além de ser roteirista em 12 obras audiovisuais (séries e filmes) e produtora em três obras, a paulistana alcançou um lugar de prestígio no mercado cinematográfico brasileiro. Mesmo em uma posição de sucesso, com obras premiadas e, agora, fazendo parte da Academia de Hollywood, a diretora afirma já ter sofrido muito com o machismo.

“Durante o sucesso de ‘Que horas ela volta?’, o preconceito foi maior porque cheguei em um patamar de poder aonde a mulher raramente chega. Foi como se eu tivesse entrado em uma festa onde não tinha lugar para mim”, confessa.

Para a diretora, o momento é essencial para refletir sobre o preconceito enraizado.
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“Estamos em um momento de revisão mundial. O machismo não acontece só na mente de um homem, está na sociedade inteira. É sutil, igual ao racismo. São pequenas falas que te diminuem. A mulher está brava, não vai mais tolerar”, sentencia.

O Cine Arte UFF fica na Rua Miguel de Frias, 9, Icaraí, Niterói. Terça-feira, dia 19, às 19h30. Preço: R$ 12 (inteira). Censura: 16 anos. Telefone: 3674-7515.