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Em cena, Guida vive Violet, uma mulher amarga e sofrida. Atriz divide cena com Letícia Isnard
Foto: Divulgação / Silvana Marques
Escolhida como Melhor Atriz e Melhor Atriz em Papel Protagonista respectivamente em duas das mais aclamadas premiações do teatro fluminense – o 5º Prêmio Cesgranrio de Teatro, em janeiro, e 12° Prêmio da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro, no último dia 9 –, Guida Vianna reestreia a já consagrada peça “Agosto” no Teatro Carlos Gomes. A atriz, diretora e produtora veterana, de 63 anos, sendo 42 de carreira, já participou de mais de 30 espetáculos teatrais e atuou em seis novelas, quatro minisséries e sete filmes. Em entrevista sincera, Guida fala sobre a desigualdade na profissão, o desmanche cultural no Rio de Janeiro, conquistas, frustrações, projeções e sua personagem na peça, Violet, uma mulher amarga e sofrida.
?O Prêmio Cesgranrio de Teatro foi marcado pelo seu discurso quase manifesto e bastante empoderado. Falar sobre a desigualdade no Brasil e no ofício do fazer teatro foi impactante. O que acabou se repetindo semana passada, no 12° Prêmio APTR. Por que você acha que a comparação pode ser uma forma valiosa de causar empatia e chamar atenção para diferentes realidades dentro da profissão?![]()
Atriz já participou de mais de 30 espetáculos teatrais ao longo de seus 42 anos de carreira
Foto: Divulgação / Silvana Marques
Primeiro, existe nitidamente um desmanche cultural no Rio de Janeiro. O Rio como estado e como cidade atravessa uma fase bastante negativa e ruim. Obviamente, o primeiro lugar de onde eles pensam em tirar verba é da Cultura, da Educação e da Saúde. Eles nunca tiram dos gabinetes dos vereadores, dos deputados estaduais, de todos que recebem, além dos salários, várias mordomias. A cultura não tem mais nenhum edital vivo. O Fundo de Apoio ao Teatro (FAT), que foi fundado ainda no governo César Mais e atravessou dois governos do Eduardo Paes, sendo regularmente pago, foi um edital criado pelo Miguel Falabella, quando ele foi gestor de teatro na época. Era um importante edital que atendia aos grupos teatrais. Esses grandes colaboradores que são os bancos, eles não dão para dramaturgia de um modo geral, eles dão para musicais, para o que representem a mentalidade ou a filosofia deles, entende? E o FAT fazia avançar, digamos, os grupos de periferia, as pequenas companhias, que é o povo que investe mais na dramaturgia cênica, na pesquisa teatral. Então, a gente, o pessoal do teatro, ficou muito desamparado. Por outro lado, existe toda essa mentalidade de que os artistas são ricos, de que os artistas mamam nas tetas da Lei Rouanet. Então, chamei atenção para o fato de que existe uma grande desigualdade social não só no País, não só no estado, mas também na nossa profissão. Existem atores que ganham um salário, hoje em dia, tão alto, que eles podem, eles mesmo, produzirem suas peças. E existe outra faixa de atores que precisam desses apoios culturais, patrocínios e leis de fomento. Um ator de teatro não ganha nada, ele não está na televisão, ele não tem salário todo dia 30 na conta. Ele precisa produzir uma peça para que ela esteja em movimento, para que tenha bilheteria e provoque viagens e convites. O teatro não é indústria, ele se mantém artesanal. O prêmio Cesgranrio teve uma base muito interessante: todos os indicados eram de grupos de teatro, eu meio que respondi a um inconsciente coletivo, falei por todos nós. É por isso que acho que houve tanta empatia.
Durante minha última entrevista com Fernanda Montenegro, a atriz mencionou os trabalhadores vocacionados do teatro e seus bastidores. Tudo só funciona porque essas pessoas continuam incansavelmente. No discurso, você citou que, semanas atrás, estava panfletando no metrô para chamar o público para ver “Agosto”. O que ainda te dá ânimo para continuar?
Acredito muito no que eu faço, no teatro como um encontro de pessoas, não intermediado por uma tela. As pessoas estão ali, ao mesmo tempo e no mesmo momento, tendo uma experiência estética, ética e artística. Ética porque a peça que está em cena, de alguma forma, sabe do que ela está falando. Uma obra artística anteriormente foi pensada por trabalhadores, por artistas... O espectador do teatro usufrui de um momento estético coletivo da representação, que é uma coisa única e efêmera. Acredito no teatro como facilitador dessa experiência para o espectador. Ele provoca reflexões, sentimentos, experiências que a obra individualmente talvez não provocasse. Acho realmente que é uma vocação. A gente só resiste por isso. A Fernanda tem toda razão. Se não fosse esse chamado, esse apelo, eu já teria ido fazer outra coisa. Porque eu não enriqueci fazendo teatro, não passo férias em Nova Iorque, não compro na Prada, nem na Miu Miu, no Versace, na Doce & Gabbana. Nada disso. Fico trancada em uma sala de ensaio de um espetáculo e quero que ele seja usufruído por um maior número de espectadores, por isso vou para o metrô filipetar.
Em “Agosto”, você interpreta uma mulher amarga, Violet, que vive a consequência de uma relação de desamor com o marido, que teve uma infância de violência e acaba descontando todas as suas tristezas, lamentações e raiva em quem está à sua volta. Fale sobre este papel, que acabou se tornando tão importante na sua carreira.
Quando você lê o resumo da peça, Violet é uma mulher que está numa situação limite: o marido desapareceu, as filhas voltam para casa, ela é amarga, cruel e sofre com um câncer na boca. E isso pode te levar a fazer uma caricatura. Mas toda pessoa amarga e cruel tem um lado humano. Meu trabalho foi descobrir nas falas da Bárbara (filha dela), nos silêncios dela e no que Violet escuta dos outros personagens, em que momento apareceria essa dor e esse afeto. Aí, ao mesmo tempo em que você sente uma raiva dela, também consegue visualizar o momento em que ela sofre o abandono dessa família e mostra toda sua fragilidade.
Tem uma coisa que me incomoda muito: você é veterana das artes cênicas e, na televisão, não teve grandes oportunidades para mostrar seu trabalho e competência. Gostaria que você falasse sobre o que poderia ser feito para os autores de TV enxergarem esses talentos. Nesse sentido, onde mora o problema?
Não tive mesmo. A rotina da televisão é muito puxada: uma novela fica no ar oito meses, mas, antes disso, ela tem, pelo menos, seis meses de pré-produção com as pessoas que escrevem, os produtores, etc. São pessoas que trabalham muito também, cerca de 12 horas por dia. Os diretores e os escritores não vão ao teatro, eles não conhecem os atores de teatro. Cada um deve trabalhar mais ou menos 14 horas por dia escrevendo, dirigindo, editando... Esse trabalho de descobrir atores fica muito nos produtores de elenco e eu acho que eles são muito inseguros em ousar. Eles preferem repetir os atores nos mesmos papeis em que já deram certo um dia. Então, se eu fiz bem uma empregada, vou ser sempre escalada para fazer uma empregada. Acho que é medo, preguiça e falta de... Pra você ter ideia, vou resumir tudo isso em uma frase que um produtor de elenco, que foi ver “Agosto”, me disse: “Eu jamais escalaria esses atores para esses papeis e, no entanto, vocês fazem muito bem”. A gente fica numa posição completamente à parte mesmo: os atores de teatro são de teatro e os de televisão são os que deram certo na TV. É um mercado fechado. Acho que pode ser que um dia mude. Existe uma classe, que é uma casta com contrato quase que vitalício na TV. A partir do momento em que começar a todos serem contratados por obra, essa roda vai girar e vão aparecer novos atores na televisão. Vai fazer o mercado caminhar. Nos últimos tempos, esse caminho tem acontecido nas minisséries com Henrique Dias, a Mariana Lima, a Malu Gali, o Júlio Andrade.
Desde que estreou a comédia ‘Dependências de Empregada’, há 42 anos, você ousaria citar sua maior conquista através do teatro? E sua maior frustração?
Vejo a vida como um todo. Vejo uma linha que a gente vai se preenchendo com altos e baixos. Com momentos muito bons, outros nem tanto, mas nada trágico. Minha vida não é um drama, embora tenha alguns momentos difíceis. Acho que o teatro me ensinou a viver. Como você tem que improvisar sempre, acaba que, a cada novo trabalho, você recomeça do zero, isso me ensinou a viver. Muitos fracassos e sucessos que vão fazendo a gente ficar forte. Hoje, sou uma pessoa sem medos. Medo de recomeçar, de refazer as coisas. Não tenho medo da vida. Ela é isso mesmo.
Você completa 42 anos de carreira e chega aos 63 de idade com tudo: chutando a porta e se impondo como profissional e como mulher. Como você se enxerga nesse momento e o que você projeta para o futuro?
Estou tendo um ano atípico, mas muito feliz, com muito reconhecimento, o que é bacana. Uma hora, isso tem que vir para dizer pra gente: “Oh, garota, você foi legal, então agora vou te dar uns presentinhos. Vai recebendo de braços abertos porque é teu, você merece. Vamos nessa”. Eu não sou uma pessoa ambiciosa, o que pode ser ruim para essa minha profissão. O que eu projeto para o futuro sempre projeto coletivamente. Acho que, se a gente tiver um país melhor, ele vai ser melhor para todo mundo. Se a gente tiver uma cultura, uma educação forte, todo mundo vai melhorar junto. Todo mundo sobe igual. O que desejo para mim, desejo para meu país. Sou brasileira, sou carioca, quero uma cidade melhor, um estado melhor, um país melhor e quero que a cultura e a educação do nosso país sejam fortes, agregadoras e que façam todo mundo crescer: intelectualmente, socialmente, financeiramente. Nunca quero só pra mim.
Pela Arte Cênica
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