Em 1888, o inglês William Flinders Petrie começou a escavar as ruínas de Kahun, ao sul do Cairo, no Egito, criando o primeiro sítio arqueológico a mostrar a rotina dos antigos egípcios. Entre as descobertas estava um bastão de 28 centímetros decorado com talhos vermelhos e pontinhos pretos. O objeto em forma de curva - um ancestral do bumerangue - datava de cerca de 1.800 anos antes da era cristã. Era, provavelmente, um brinquedo de criança, confirmando que a importância do brincar é milenarmente reconhecida.
Segundo o Dicionário Aurélio, “divertir” e “entreter” são sinônimos para “brincar”. Contudo, a psicóloga Élida Albacete afirma que o ato lúdico ultrapassa o lazer.
“A brincadeira é tão importante para a criança quanto uma boa educação ou uma boa nutrição. Os pais devem lembrar que a brincadeira não é algo que se dê aos filhos caso tenham tempo. É uma necessidade infantil que precisa ser cumprida para que a criança cumpra, também, outras etapas da vida. É biológico, ela precisa brincar para aprender a ser adulta”, explica Élida.
O neurologista Oscar Bacelar acrescenta que brincar contribui, também, para o sistema nervoso da criança.
“Ao brincar, o indivíduo capacita seu raciocínio, afinal, precisa prestar atenção no que está fazendo. Numa atividade com esporte, por exemplo, a coordenação do movimento é muito exercitada, principalmente ao usar uma bola para acertar o gol. Vemos, também, uma melhora na capacidade de abstração: ao brincar com um carrinho, a criança vê o brinquedo e imagina o automóvel andando e, assim, precisa raciocinar como esse carro funciona”, explica o neurologista.
A brincadeira é uma fonte de dopamina, um neurotransmissor fundamental para motivação, foco e produtividade. Oscar Bacelar esclarece que, ao brincar, a criança libera o hormônio, e, a partir de reações químicas no organismo, traz felicidade.
“Isso alimenta os sistemas de recompensa do organismo que passam a funcionar. Ao buscar a vitória e consegui-la, esses sistemas são sustentados, fazendo com que a criança crie um apreço pelo jogo. Isso faz com que a criança queira jogar de novo e, assim, melhore suas funções corpóreas. Acaba criando um ciclo, afinal, gera uma motivação química dentro do corpo que favorece o brincar”, conta.
Patrícia Dias, professora de Educação Física, conta que a criança que não brinca tem dificuldades para desenvolver suas habilidades.
“Se a parte lúdica não for trabalhada, as crianças ficam tolhidas. O corpo não se desenvolve. Elas ficam contidas. Vemos, às vezes, aquelas que não sabem, sequer, correr. Levo meus alunos a um sítio para desenvolvermos atividades esportivas e, ao ficarem soltas no gramado, algumas caem umas sobre as outras porque não sabem correr. Não aprenderam brincando”, lamenta.
De acordo com a psicóloga, as crianças, hoje em dia, estão sendo projetadas para serem adultos com excelentes performances, mas afirma que isso pode ser prejudicial.
“Elas fazem cursos de inglês, intercâmbio no exterior. Estão o tempo inteiro sendo qualificadas para que sejam excelentes adultos. Porém, não desenvolvem a capacidade emocional e cognitiva para lidar com pequenas coisas. As crianças, então, não conseguem aprender o que deveriam ter adquirido no dia a dia com brincadeira: ser frustrado, lidar com as diferenças, aprender a ouvir ‘não’. Tenho crianças no consultório que, ao fazê-la propositalmente perder um jogo, não suportam a derrota. Isso se aprende brincando. E não há necessidade que um adulto ou profissional ensine”, acrescenta a especialista, que afirma, ainda, que o jeito mais apropriado da criança brincar é fazê-lo de forma livre, para que, assim, tenha um ensaio sobre a vida real, sendo a melhor forma de compreender o mundo. “A brincadeira trabalha inúmeros aspectos da vida da criança. Emocional, intelectual, verbal. A criança aprende isso tudo porque a verdadeira brincadeira não vem pronta. Tendo uma casa da Barbie, por exemplo, eu só vou brincar de Barbie, sendo Barbie, mulher do Ken, dentro da realidade de Beverly Hills. Não é assim que a criança brinca quando inventa uma brincadeira com papel, quando corre na rua. Isso estimula a criação, desenvolve o corpo, a motricidade. Quantas vezes ouvimos um ‘ele não quer brincar comigo’? É um jeito de lidar com a vida. Nessa brincadeira, a criança aprende o limite do seu corpo. Ela compreende quanto aguenta correr. Aprende a riscar e a fazer interações matemáticas. Aprende a trabalhar em equipe. Todas as esferas da vida são influenciadas pelo brincar”, elucida.
Os argumentos de Élida Albacete confirmam a pesquisa realizada em março de 2016 pela Edelman Berland, empresa americana de pesquisa de mercado, que, após entrevistar 12.170 pais de 10 países diferentes, concluiu que 97% deles acreditam que brincar ao ar livre ajuda seus filhos a desenvolverem habilidades importantes.
Patrícia acrescenta que deixar a brincadeira livre, sem cobranças e exigências auxilia, também, no desenvolvimento do corpo da criança.
“Tudo flui naturalmente. Se começa uma cobrança impondo o que deve fazer, para onde jogar a bola, como posicionar o braço, as crianças ficam nervosas, tensas. A parte física trava e eles começam a se podar, sem desenvolver o que realmente precisam. Já quando trabalhamos a parte lúdica, eles não ficam muito preocupados se estão fazendo certo ou errado, conseguindo, enfim, progredir com seu próprio desenvolvimento físico”, esclarece.
Em meio à revolução tecnológica, com a ascensão dos jogos em aplicativos, celulares, tablets e computadores, a pesquisa americana informou, também, que 24% do tempo livre das crianças brasileiras é gasto na frente de uma tela em ambientes fechados, enquanto apenas 15% desse tempo é gasto em ambientes abertos. O neurologista Oscar Bacelar explica que permanecer em ambientes fechados pode desregular o ciclo circadiano - o “relógio biológico” -, causando, principalmente, problemas de sono.
“A luz do dia é extremamente necessária para que nosso ciclo funcione melhor. A permanência em lugares fechados pode causar um isolamento das relações sociais que são essenciais para evitar e combater transtornos de ansiedade e depressão. Ficar ‘preso’ dentro de um cômodo pode fazer com que a criança seja tímida, inibida e arredia”, alerta o especialista. Ao olhar da psicóloga, as relações emocionais e sociais também são influenciadas pelas preferências tecnológicas. “Quando brinco com o computador ou com outro jogo no qual não preciso me relacionar com ninguém, eu não preciso ser alguém agradável. Não preciso dividir nada. Não preciso treinar minha empatia. Não preciso fazer nada. Então, não é a melhor maneira de brincar e desenvolver suas necessidades”, conta Élida.
Neste cenário onde a maioria das crianças prefere o digital, há, contudo, aquelas que ainda sim preferem brincar ao ar livre. Henrique, de 10 anos, filho da jornalista Simone Ronzani, sempre gostou de brincar fora. Não é à toa que, para seu aniversário de sete anos, pediu à mãe que preparasse um tema de acampamento. Repleta de brincadeiras “outdoor”, a festa, que aconteceu em um sítio, divertiu os convidados com futebol de sabão, banho de mangueira, “skibunda” e cabo de guerra. Simone conta que as crianças levaram suas bicicletas e ficaram livres para brincar, aproveitando o espaço e o sol.
“Sair do universo digital às vezes é difícil, mas vale a pena. Seja pela luz do sol, pela autonomia que a criança adquire ou proatividade. A partir de uma brincadeira boa, várias ideias podem surgir”, conta Simone.
Antonio Araujo, de 7 anos, conta que abre mão do seu PlayStation para brincar de ninja, jogo criado por ele mesmo, com seus amigos no pátio do condomínio.
“No play, tenho mais opções de brincadeiras e posso fazer mais amigos”, diz Antonio, que conta, também, que se limitar ao videogame não dá oportunidade de fazer novas amizades.
Sua mãe, Vanessa Santos, de 36 anos, conta que seu filho larga qualquer situação para estar no playground, brincando com seus amigos.
“Dei a liberdade para ele poder brincar. Não o prendi dentro do apartamento com o videogame porque era mais seguro. Deixo ele brincar com os amigos, na minha casa ou na casa deles”, conta a fisioterapeuta.
Contudo, os videogames e eletrônicos não são vilões.
“Os meios eletrônicos são um bom método. Existem interfaces hoje em dia que são tridimensionais, que utilizam realidades virtuais. É bem interessante, pois a velocidade de reação do indivíduo pode ser acelerada pelo uso do videogame, afinal, ele simula atos que a pessoa precisa fazer com reações muito rápidas”, elucida o neurologista Oscar Bacelar.
Élida Albacete acrescenta que o excesso dos tecnológicos são prejudiciais. Seu uso, portanto, pode ser usado como aliado dos pais na criação dos filhos.
“O jogo desenvolve inúmeras habilidades que, por exemplo, brincar com carrinho de rolimã não irá desenvolver. O errado é a criança brincar apenas assim. Só se divertir assim. É, inclusive, uma dica para os pais. Devemos parar de só criticar a tecnologia como se ela fosse nossa inimiga em tempo integral ou como se estivesse ali para destruir a infância e as relações. Ela pode, sim, ser algo benéfico. O que se fala hoje dos ‘joguinhos’ é o que se falava, antes, da TV: destroem famílias. Mas não é verdade. Tudo depende da maneira que usamos. Podemos usar esses meios tecnológicos como uma oportunidade de socialização”, conta a especialista.
Das brincadeiras que surgiram nos últimos tempos, o Pokémon Go, jogo eletrônico voltado para smartphones, mobiliza crianças de todo mundo em uma caçada a monstrinhos, misturando ambiente urbano e virtual, através da tecnologia da realidade aumentada.
“É uma brincadeira em que eu encontro muitos amigos, que é uma coisa que eu não estava fazendo antes. Isso é muito legal, se fosse um outro jogo, talvez eu ficasse em casa o dia inteiro. A gente se encontra por causa de Pokémons, mas conversa sobre tudo”, explica o estudante Arthur Costa, de 11 anos, que semanalmente se encontra com os amigos para a brincadeira.
De acordo com a psicóloga Élida Albacete, as tecnologias permitem, também, que pais e mães participem da vida social do seu filho. É o que tem acontecido com a advogada Penha Mara Cardoso, de 43 anos, que além de levar seu filho, Pedro Cardoso, de 11 anos, às caçadas por Pokémons, participa junto com ele da brincadeira.
“Ele me viciou nesse jogo, mas é muito bom esse tempo que a gente passa junto. Também ajuda muito na nossa interação. Ele vive me perguntando se eu vou evoluir o Pokémon, mas eu ainda não entendo muito o que isso quer dizer. Só sei que é muito legal, nós ficamos juntos”, comemora a mãe.
A interação entre pais e filhos através do jogo é mais comum do que se pensa, segundo Pedro.
“Não é uma coisa tão diferente minha mãe jogar Pokémon Go. Conheço várias outras que jogam. Acho engraçado, mas pelo menos ela se anima de me trazer para jogar na rua”, brinca o estudante.
Diferente dos jogos anteriores, segundo a advogada Camila Plauska, 39, agora é possível observar os jovens fazendo amigos de verdade.
“Eles marcam, se encontram, passam o dia juntos, conhecem outras pessoas. É um jogo eletrônico, mas com interação de verdade”, explica.
Mais que caçar criaturinhas estranhas, o jogo é uma espécie de ponto de encontro segundo Gabriel, filho da Camila, de 11 anos.
“Acabo encontrando muita gente que eu conheço. A maioria está envolvida com esse jogo”, afirma Gabriel.
(Colaborou Ulisses Dávila)