Crime e fé juntos?

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Christina Vital criou a tese de Doutorado: “Oração de Traficante: Uma Etnografia”

Foto: Douglas Macedo


Resultado de uma tese de Doutorado, “Oração de Traficante: Uma Etnografia” é o acúmulo de pesquisas da professora de Sociologia da UFF Christina Vital desde a década de 90 em Acari, na Zona Norte carioca. A obra promove ainda uma análise comparativa com outra favela, a Santa Marta, na Zona Sul.

Como foi a concepção para a obra?

A ideia para o doutorado era ter um contraponto de análise que pudesse iluminar algumas questões em relação àquele campo que eu já vinha realizando na Zona Norte. Outra questão comparativa importante era pensar que diferença fazia em termos da organização social e redes de solidariedade que existem nas favelas, estar na Zona Sul ou Zona Norte.

Quais diferenças a pesquisa aponta entre a favela da zona sul e a favela da zona norte?

Santa Marta, além de estar na Zona Sul e ter uma rede de acesso a bens políticos, de consumo e culturais, é sede de um número enorme de projetos. Vários moradores relatam que “inventam” projetos que eles não precisam e as turmas oferecidas não conseguem ser lotadas. É uma favela isolada, que não tem continuidade com outro território de favelas. Já Acari é integralmente diferente. Tem uma precariedade nos serviços do entorno, de lazer e cultura. É chamado complexo de favelas, no jargão policial, porque é composto na continuidade de várias favelas, inclusive com outras áreas que são de comandos rivais. É um campo muito mais conflagrado e precário em termos de serviços públicos.

As instituições religiosas têm atuação diferente nestes cenários distintos?

No contexto conflagrado, de poucos serviços públicos, e os que existem são precários, as redes religiosas são muito mais atuantes e importantes na sociabilidade do que na favela da Zona Sul, que tem um perfil de muitos programas sociais, e na relação dos moradores com a cidade. Tem uma rede de oportunidades e serviços públicos que possibilitam oportunidades de vida para as pessoas que é muito diferente da favela da Zona Norte.

A imprensa noticiou que traficantes de drogas expulsaram mães de santo das favelas. O que sua pesquisa apurou neste sentido?

Em 2008 começaram a sair algumas matérias sobre esses traficantes que, na época, eram apresentados como vinculados às igrejas evangélicas e que, a mando desses pastores, estavam tirando mães, pais e filhos de santo das favelas. Inclusive um episódio desse, que aconteceu no morro do Dendê, ganhou grande visibilidade e foi fundamental na fundação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa no Rio de Janeiro (CCIR). O “Oração de Traficante” e os artigos que lancei antes do livro estavam dando conta dessa situação nas favelas, tentando entender quais eram essas relações. Tem uma diferença de lugar para lugar. Em Acari não houve expulsão de filhos de santo, mas havia um constrangimento público desses religiosos de matriz afro-brasileira que se apresentavam na vida social da favela como adeptos dessas religiões. Esse constrangimento era em relação aos moradores de modo geral e traficantes de drogas também.

Como um traficante de drogas pode ser evangélico?

Há uma tensão muito grande em torno dessas figuras do tráfico nas igrejas. Uma parte dos evangélicos, que nas entrevistas se dizia o verdadeiro evangélico, acha que esse aproximação dos traficantes das igrejas, desse modo que vinha acontecendo em Acari e em outras favelas, é um falso testemunho. Esses traficantes colaboram para uma percepção moralmente duvidosa em relação aos evangélicos. A questão se dá quando os traficantes se convertem mesmo estando no tráfico, quando participam de campanhas na igreja e quando pagam dízimo. Para alguns evangélicos, esses momentos são mais negativos do que positivos para a igreja.

Como os traficantes e lideranças religiosas justificam essas aproximações?

A partir de uma questão importante que seria a conversão vista como ruptura e a santificação vista como um processo. A conversão é um ato em que o traficante aceita Jesus como Senhor da sua vida. Os passos que ele vai seguir nessa nova vida são gradativos. É nesse sentido que os traficantes dizem que são evangélicos, mas que estão passando por uma libertação, principalmente a libertação do dinheiro e o desejo da vida boêmia.

A aproximação com o universo religioso gera alguma mudança no traficante?

Em uma programação para o futuro e financeira. Eles começam a investir de modo mais racionalizado em negócios, como postos de gasolina, terrenos, sítios e fazendas. Vários deles já faziam isso antes, mas, neste momento, com uma organização financeira para essa autonomia e libertação, que passa a ser o foco dos trabalhos dos traficantes na aliança com essas lideranças religiosas. Uma maneira de se programar para se libertarem dessa vida, mas com uma fonte de sustento para a família, que lhes possibilite largar o tráfico. São processos cheios de idas e vindas.

Existiu proximidade entre traficantes e outras religiões?

Existiu. Está registrado no meu livro a proximidade de traficantes com o universo religioso afro-brasileiro. Em décadas anteriores, os marcos de sociabilidade locais passavam por festividades que eram produzidos no seio dessas casas de Umbanda e Candomblé. Grandes comemorações religiosas realizadas em terreiros com participações da sociedade e com a proximidade dos traficantes também. Esse aspecto é histórico, bandos armados que buscam na religiosidade uma proteção para suas atividades. A questão que se apresenta é que as religiões cristãs, como outras religiões éticas que são sistemáticas e disciplinares, não eram tradições que historicamente estavam próximas desses bandos armados, porque eram tradições que exigiam práticas e regras que demandavam um certo comportamento e mudança.

Como você se preparava para esses encontros de pesquisa de campo?

Desde 1996 faço pesquisa de campo em Acari e os traficantes me viam entrar e sair na casa de famílias amigas, pois estabeleci uma rede afetiva para além do trabalho de pesquisa, então sempre me viam ali no local. Teve traficante que conheci por fotografia com quatro anos de idade e o entrevistei anos depois, no tráfico. Então existia uma relação que me possibilitou abordá-los diretamente para pedir a entrevista. A minha abordagem não era para falar do tráfico, mas sim para falar da questão religiosa na favela. Em razão disso, tive a possibilidade de entrada tanto da abordagem da religião quanto o fato deles me verem passar ali muitos anos.

Aconteceu algum momento tenso nesses encontros durante a pesquisa de campo?

Teve uma situação tensa pra mim quando estava na favela fotografando muros, fazendo recolhimentos de décadas de imagem. Fui falar com o morador que me viu tirando as fotos e mostrei a ele a imagem. Disse a ele que era da minha pesquisa. No dia seguinte, quando fui à casa de uma moradora na favela, um traficante armado entrou no local me interpelando sobre o que eu fazia ali. Pouco tempo depois, chegaram muitos moradores que se mobilizaram para esclarecer que eu era pesquisadora.

Como foi a repercussão do livro?

No início da pesquisa, se tinha muita reticência, porque parecia uma abordagem muito midiática de um tema que era muito sensível: a aproximação de traficantes de um universo cristão. Gosto de chamar a atenção sempre disso, pois acho que a acomodação social em torno da aproximação de traficantes religiosos de matriz afro-brasileira era moralmente muito aceita pela sociedade e pesquisadores. Quando falamos de uma proximidade entre cristãos e pessoas que estão na vida do crime houve um incômodo moral muito grande. Isso nos faz pensar o lugar moral que o cristianismo tem em nossa sociedade. 

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