Quando se fala de Fernanda Montenegro, acima de qualquer coisa está a certeza de se tratar de uma mulher que vive pela arte, uma operária do teatro. Até mesmo na forma humilde com que se comportou ao fim dessa entrevista, agradecendo por ser merecedora de “tantas perguntas”. Com 73 anos de carreira, em 2019, a atriz vai completar 90 anos. Aos 50, em uma entrevista, ela disse que, com muita sorte, chegaria aos 80. Já passou e ainda vai muito longe, se depender da sua potência para a labuta. Esse ano, a atriz abre a Flip, em julho, com um texto de Hilda Hilst, lança um livro fotobiográfico e dá deus à Mercedes, sua personagem na novela “O Outro Lado do Paraíso”, da TV Globo. Hoje, dia 18, Fernanda fará leitura dramatizada de Nelson Rodrigues no Teatro Municipal de Niterói, em duas sessões: às 17h e às 19h.
Você está há cinco anos viajando o Brasil com as leituras dos textos de Nelson, que falam de amor, adultério, futebol, juventude e dramas familiares. lá no início do século 20, ele já criticava a sociedade e suas instituições, principalmente o casamento. Como ainda hoje soa tão contemporâneo?
O Nelson se prende muito ao existencial. Aliás, essa leitura é muito mais ligada à sua própria sobrevivência, ao seu momento de não acabar ali, compreende? Acho que ali a gente talvez encontre o momento atual que é esse: temos que sobreviver, não podemos acabar aqui e agora. Espero que tudo vá bem hoje no Teatro Municipal, nesse espaço lindo que honra o nosso teatro. Foi um ator que construiu esse teatro na primeira parte do século 19, não foi um ministro. É um lugar feliz, de criatividade, de encontro de arte.
A leitura dramatizada é baseada no livro “Nelson Rodrigues, por ele mesmo” (2012), com crônicas nunca antes publicadas, organizadas por sua filha Sônia Rodrigues. Como foi selecionar esse material para os palcos?
A Sônia aceitou com muita generosidade a reorganização das crônicas do livro por mim. Ela fez segundo a visão dela e eu, por outro lado, fiz a ordem das crônicas em função de uma leitura pública, em voz alta. Trabalhei nesse roteiro por um ano. Fiz um entrosamento que, ao ler, existe uma cronologia dos acontecimentos da vida de Nelson. É tudo biográfico, não há nenhuma fala minha, nada meu escrito. Tudo o que está nessa leitura é do texto dele, onde ele fala dele, do seu sofrimento e da vida. Nelson enquanto pessoa.
Ano que vem, você fará 90 anos. sente o peso da idade?
Quem não sente o peso da idade com a idade em que eu estou? Trabalhar tanto me mantém viva. Não pode sentar; se sentar, morre. Vem o fim da novela, o lançamento do livro do Sesc sobre os meus 73 anos de vida pública, “Fernanda Montenegro – itinerário fotobiográfico”, cheio de documentos e fotos. Devo também participar da Feira Literária de Paraty.
Nosso primeiro encontro foi na coletiva de imprensa de “O tempo e o vento”, em 2013, e te fiz uma pergunta sobre a força da Bibiana Terra. Muitos dos seus personagens são assim. Você destacaria algum?
Eu tenho uma galeria grande de mulheres afinadas, fortes, geralmente conduzindo a trama, titulando personagens. Entre filmes, novelas, séries e teleteatro são quase 100 personagens. Não tenho como destacar algum. É um bloco de teatro que se realiza e, no fundo, é um viver no processo de vocação. Cada uma traz para gente algum aprendizado de humanidade, desde que a gente se entregue ao processo do trabalho.
Em maio, acaba a novela “O Outro Lado do Paraíso”, em que você interpreta Mercedes. O que fica em você dessa sábia personagem?
Busquei para a configuração do personagem as pessoas mais velhas da minha infância. Fui criança nos anos 30, imagine? Então fui buscar as velhas que eu conheci, rezadeiras ou não. Eram as tias e avós velhas da minha família.
Já sabe que texto de Hilda Hilst vai ler na abertura da Flip, em 25 de julho?
Ainda não me mandaram o resumo do que vou fazer, está distante. Estou muito feliz de poder dizer o texto da Hilda. Estive algumas vezes com ela. Hilda é dona de uma obra importante, agressiva e plena.
Em 2008, foi lançado “Fernanda Montenegro - A Defesa do Mistério”, de Neusa Barbosa. A jornalista chegou até você para demonstrar o interesse em escrever o livro?
Algumas proibições a gente protesta. Não há possibilidade de se viver com proibições desse tipo. Eu só quero deixar todo o ocorrido em uma frase: É proibido proibir.
Em janeiro, saiu o novo CD do Cézar Mendes, no qual você canta. Como foi a experiência?
Já cantei em cena, já fiz opereta, já fiz “O Mambembe”, já fiz o musical do Chico Buarque chamado “Suburbano Coração”, na década de 70, já cantei muitas vezes canção em cena. Mas não sou cantora, sou uma atriz que pode interpretar, mas sem nenhuma ambição. É uma gentileza do Cezinha achar que eu podia cantar. Não me proponho como cantora, mas, se necessitar cantar, eu vou. Vou estudar, me preparar um pouquinho, mas jamais com uma visão de cantora.
Você já comentou que é uma mulher doméstica. Como seria a Fernanda doméstica?
É voltar para casa e achar que lá é seu buraco sagrado. Quando a vida aí fora permite, sou caseira. Eu volto para casa e gosto de voltar para casa.
Em entrevista com o diretor Eduardo Wotzik, ele mencionou sua capacidade genial de falar a coisa certa, com as palavras certas, na hora certa.
Ele é um cara muito legal e importante. Aí eu já não sei, não é comigo (risos). A gente vai vivendo de acordo com a experiência de vida. E vai se sensibilizando na sobrevivência, compreende?
Certa vez, você disse publicamente que “Há um País, que é Brasília, que coloniza o seu próprio país”. O que você acha que falta ao Brasil?
Justamente isso: acabar com essa colonização de Brasília sobre o Brasil.
Queria que você falasse sobre feminismo, sua relação com o movimento.
Eu acho que a mulher tem que lutar pelo seu lugar de igualdade mesmo. A gente só vai ter igualdade quando tivermos o dia do homem, como também só vai ter uma real democracia no atendimento do ser humano quando tiver o dia do branco. Tem dia do negro, dia da mulher, dia do índio... Espero chegar o dia que não se tenha o dia de ninguém. Ou, então, que todos tenham seu dia porque estamos igualados na sociedade.
O País vem passando pela desvalorização da cultura. Na sua opinião, como ela se restabelece e sobrevive?
Cada época está sobrevivendo, no Brasil, em termos de cultura, como pode. Acho que a cultura brasileira está nas catacumbas. O Rio de Janeiro, então, é uma tragédia. O Theatro Municipal do Rio, que é o mimo do Estado como espaço cultural, esteve abandonado e agora diz que vai ter alguma programação. Os teatros estão todos ao léu. Espero que o Teatro Municipal de Niterói, onde eu já me apresentei diversas vezes, esteja sendo cuidado e tenha uma programação que estimule a presença de plateias. As pessoas que trabalham na área, de modo geral, estão fazendo a programação que se pode, num esforço pessoal por sua vocação. É preciso que haja volume de produção, até diversificado, para que se possa trazer a plateia, porque só vai aparecer o faminto se você oferecer o prato de comida. Os vocacionados não morrem. Como a arte vive da extrema vocação de quem é chamado para esse tipo de atividade, então vai sobreviver a esse momento difícil que nós estamos passando nesse País.