Receitas da vovó

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Uma das especialidades de Marilena é a “surpresa de abacaxi”, que sua mãe fazia

Foto: Lucas Benevides

Um caderninho antigo, com as folhas já soltando, cheio de medidas e ingredientes escritos à mão. Qual é a avó que não possui as receitas antigas guardadas, quase já apagadas devido à tinta gasta no papel? Para os netos, ir para a casa da vovó é sinônimo de comer (muito) bem. Para elas, é uma oportunidade de fazer mais uma vez aquele bolinho de chuva ou a receita que já está na família há décadas.
 
No Natal, a confraternização é um dos momentos em que a família se reúne para provar receitas antigas. Bolo de bacalhau, peru, salpicão… Na mesa não falta variedade. Ana Dalva, de 76 anos, é a responsável pela sobremesa na ceia de Natal. Os netos e os filhos não deixam a Dona Dalva esquecer o prato principal da noite, a rabanada, que está na família há mais de 50 anos. 

“A receita era da minha avó, que era mineira. Está na minha família há muitos anos. Adoro cozinhar variedades e tenho muitas receitas guardadas, muitos livros… A rabanada é o sucesso da ceia”, revela.

O Natal é conhecido pelos pratos típicos, aqueles que não podem faltar. Um deles é o bacalhau. Difícil de fazer, mas fácil de combinar, ele é o ingrediente principal de saladas e pratos principais e marca o Natal por ser um item especialmente difícil de encontrar ao longo do resto do ano. Maura Xavier, de 64 anos, conta que é dona de uma receita que a neta ama: a salada de bacalhau. Há mais de 20 anos a avó, cozinheira de mão cheia, leva o prato para a festividade.

“Aprendi a aprimorar a bacalhoada fazendo para as outras pessoas e, agora, ela se tornou de tradição de família, todo Natal tem. É um dos melhores pratos de bacalhau que eu já fiz”, explica, sem falsa modéstia.  

A imagem de uma senhora na cozinha, de avental, colocando uma torta no forno e mexendo a calda de chocolate fervendo na panela é o que vem à cabeça quando se fala das avós. A mãe de Marilena Picado, por exemplo, era daquelas que cozinhavam com amor. Algumas das suas receitas estão vivas até hoje na memória dos filhos e netos. Marilena, que tem 76 anos, lembra que sua mãe cozinhava e até os vizinhos batiam na porta para ver o que a senhora estava fazendo. Ela conta que a mãe não amava a cozinha e preferia outras atividades, mas tudo o que ela fazia ficava, misteriosamente, delicioso.

“Minha mãe faleceu aos 95, mas, até os 80, ela cozinhava. Quando fazia a comida, o vizinho dizia que ela era tão cheirosa que ele tinha vontade de pegar o pão e comer só com o cheirinho”, lembra Marilena. 

As especialidades de Marilena são a “surpresa de abacaxi”, que sua mãe costumava fazer, e o empadão, receita que a senhora aprendeu sozinha e que já conhece há 20 anos. Ela revela que vê os pratos diferente de como a mãe via, e que, por este motivo, nada sai do mesmo jeito.

“A receita me lembra minha mãe e toda comida que a gente prepara nos faz lembrar dela. Nós não fomos acostumadas a cozinhar, eu e minhas irmãs, mas a gente sempre viu ela cozinhando. Ninguém faz as receitas como ela cozinhava”, admite.

O gosto dos pratos de família é diferente dos demais. Os laços afetivos unem as pessoas, juntam histórias na bagagem. Algumas reuniões são realizadas com o delicioso objetivo de comer aquela receita específica, que só uma avó consegue fazer, que os netos e sobrinhos não podem ficar sem.

O irmão de Marilena, Marco Picado, diz que, muitas vezes, no fim de semana, um “evento” é realizado só para degustar o famoso empadão da irmã. Segundo ele, todo mundo ama a receita, mas não tem um só parente que consiga reproduzi-la.

“As sobrinhas pedem o empadão no almoço, nas datas especiais e como lanche, ele está nos aniversários, nas reuniões, nos feriados… Ele é considerado o melhor da família. Todos dizem que tentam fazer, mas que não fica igual, a Marilena é a rainha do empadão da família Picado”, reconhece. 

As receitas são parte do todo, são quase membros da família que estão ali há muitos anos, quase imortais. Marilena acredita que as comidas que faz ainda servirão para as sobrinhas, irmãs e filhas e estarão na família durante um bom tempo. 

“Guardo a receita porque as pessoas gostam, a família toda, e pela ligação parentesca. Todo mundo pede, então eu acredito que ela fique conosco para outras gerações”, espera. 

Não apenas devido à experiência, mas porque são amorosas, colocam tempo e sentimento em tudo o que fazem, as vovós estão ligadas à memória afetiva como cozinheiras de mão cheia. E é por isso que ninguém consegue reproduzir perfeitamente uma receita de vovó. Apenas sendo uma para entender todo o significado que um prato carrega. 

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