Refém do outro

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O quadrinista Eberton Ferreira ilustrou nos desenhos o que é um relacionamento abusivo

Arte: Eberton Ferreira

Desentendimentos frequentes, humilhações, agressões verbais e até físicas, ciúme possessivo e desrespeito. Você é um prisioneiro do amor que sente pelo seu parceiro? É difícil definir exatamente quando um relacionamento é abusivo, no entanto, essas são características de uma relação em que o excesso de poder sobre o outro predomina, como retratou o quadrinista Eberton Ferreira nos desenhos que ilustram essa matéria.

“Um dia, ele me jogou no chão e disse que preferia ficar viúvo a divorciado. Comecei um namoro achando que a relação era um mar de flores, mas, em pouco tempo, as agressões começaram. Eu não aguentava mais, mas sentia pena quando ele dizia que iria mudar”, recorda Juliana Magalhães* (28), que viveu um casamento abusivo aos 18 anos. 

Na percepção da jovem, o relacionamento era um conto de fadas, até que eles casaram e o parceiro mudou completamente: tudo era motivo de briga, começaram agressões psicológicas, beliscões, sacudidas e olhares controladores. Certo dia, após muito refletir e resgatar a força e a coragem que existiam dentro de si, decidiu revelar à família as atrocidades que passava. Segundo Juliana, eles foram fundamentais para que ela se separasse do agressor.

“Alguns traumas ficaram, mas superei, retomei os estudos, minha carreira e o mais importante: comecei a me amar! Nunca mais aceitei ser pisada por ninguém”, comenta, determinada.
Atualmente, Juliana dá assistência às pessoas que passam pela violência física e psicológica que ela enfrentou. 

Na cidade vizinha, em Itaboraí, a recepcionista Nicole da Silva*, de 27 anos, também foi vítima de um relacionamento abusivo. Durante cinco anos, ela viveu um ciclo que parecia interminável de brigas constantes, chantagem emocional, traições e reconciliações com promessas de mudanças. Na época, ela não tinha noção de que o amor que acreditava viver era abusivo. 

“Sempre escutei que ‘a mulher sábia edifica o lar’. Mas ninguém imaginava a violência psicológica pela qual eu estava passando”, revela.

Sem perspectiva de um futuro e perdida, Nicole não reconhecia mais sua identidade e acreditou que a única maneira de conseguir sair desta relação tóxica era chegando ao fundo do poço, deixando-o destruí-la, para que não restassem esperanças de mudanças.

“Hoje, sei que não deveria ter me permitido ser destruída desta forma, mas, na época, era a única coisa que eu achava que poderia funcionar, pois não tinha informação de como agir”, analisa Nicole, que completa: “Agora, dedico parte do meu tempo para ajudar mulheres do grupo ‘Será que meu relacionamento é abusivo?’ no qual as acolhemos, orientamos e encorajamos. A cada relato de alguém que conseguiu se libertar, parece que sou eu outra vez recomeçando”.

Para a psicóloga Renata Alli Nunes Correa, muitas vezes a mulher demora para perceber que está vivendo um relacionamento abusivo porque ele nem sempre envolve agressões físicas, mas, sim, agressões psicológicas e sutis. 

A recepcionista Nicole da Silva*, de 27 anos, foi vítima de um relacionamento abusivo

Foto: Lucas Benevides

“Temos a ideia de que violência e abuso são só físicos. É comum o agressor diminuir as conquistas do parceiro, menosprezá-las. Muitas vezes, ele não o ofende diretamente chamando-o de burro e incompetente, mas enfatiza que o que ele fez poderia ter sido melhor. Com frequência, o agressor domina o parceiro e controla sua vida de uma forma mais serena, dificultando a identificação daquela relação como uma relação abusiva”, alerta. 

A Lei Maria da Penha, de 2006, é a principal legislação para combater a violência contra a mulher, todavia, poucos sabem que a lei considera diversas formas de agressão, além da física, como violência: há também a violência patrimonial, a sexual, a moral e a psicológica. Seja qual for a classificação da agressão, em mais de 80% dos casos, segundo a Secretaria de Política para Mulheres, ela é praticada pelo parceiro ou ex, configurando um relacionamento abusivo. 

Este é o caso de Luiza Belmonte*, que, aos 14 anos, após ser violentada sexualmente, engravidou e foi obrigada a casar com o agressor. Além dos xingamentos que escutava, apanhava e foi perseguida diversas vezes pelo marido agressor com uma faca em mãos, o qual a ameaçava de morte. Para se salvar, ela precisou fugir com os seis filhos para São Gonçalo e tentar reconstruir a vida. Hoje, com 84 anos, criou seus filhos, netos, encontrou o verdadeiro amor e deixou este drama para trás. 

No documentário “Mexeu com uma, mexeu com todas”, que estreia em julho, a diretora Sandra Werneck discorre sobre as violências contra a mulher através do depoimento de personalidades – algumas conhecidas, como a ex-modelo Luiza Brunet, Maria da Penha (que deu nome à lei) e a nadadora Joanna Maranhão, outras não – que sofreram assédio, abuso sexual e violência doméstica, assim como Luiza sofreu. 

“Quero gerar uma discussão sobre o assunto e encorajar as mulheres a sair dessas relações tóxicas, procurando ajuda e denunciando. Muitas vezes, elas não denunciam por medo de perder os filhos, por uma questão financeira, pela ilusão de que o parceiro vai mudar, e continuam naquele relacionamento em que são violentadas, não só fisicamente, mas também psicologicamente. Mulheres, façam um B.O., vocês não vão se arrepender”, aconselha Sandra.

Há alguns anos, Felippa Bernardes* (23) conheceu o namorado pela internet. Desde o início, João era invasivo e não dava espaço nem liberdade para ela. Todos os dias, ele a acompanhava até o trabalho, a esperava nos intervalos e a pressionava para dormir na casa dele ameaçando terminar o namoro. João chegou a tentar convencê-la a viajar com ele para um lugar isolado durante seu intercâmbio e enganar a mãe, entre outras tentativas de sufocá-la e manipulá-la.

“Ele dizia que não confiava em mim e me chamava de mentirosa. Eu evitava fazer qualquer coisa que pudesse chateá-lo”, conta a jovem, que abdicava dos amigos e ouvia absurdos calada.

No intercâmbio, as coisas pioraram: ele queria controlá-la de longe. Foram diversas brigas e conflitos, acusações equivocadas e violência psicológica. Por outro lado, a viagem a fez perceber que estava vivendo um relacionamento abusivo e que precisava pôr um fim nesta história.

A Lei Maria da Penha, de 2006, é a principal legislação para combater a violência contra a mulher

Arte: Eberton Ferreira

“Assim que voltei, graças à ajuda da minha mãe, consegui me libertar. Passei alguns dias triste e chorando, mas, quando caiu a ficha, me senti muito bem! Me achava livre e, ao mesmo tempo, uma idiota por ter permitido que tudo isso acontecesse. Passei um tempo sem conseguir pensar nessa história, mas, hoje em dia, consigo compartilhá-la com outras pessoas, principalmente porque sei que posso ajudá-las”, comenta aliviada. 

O Brasil é um país culturalmente machista, por isso, é mais comum o homem assumir o papel de agressor e ter mais dificuldade para reconhecer quando sofre algum abuso. Segundo dados do Ligue 180, canal de auxílio destinado à população feminina, no ano passado foram cerca de 1,3 milhão de denúncias e milhares de atendimentos, 50% relacionados à violência física, 31% à psicológica e 5% à sexual. Todavia, qualquer um pode passar por situações abusivas dentro de um relacionamento.

“Presenciamos mais casos de mulheres que sofrem violência, mas o contrário também acontece. A mulher pode controlar a vida do parceiro, fazer com que ele se sinta submisso. O fato é que um relacionamento abusivo consiste sempre em uma pessoa com perfil agressivo, abusador, que acaba se envolvendo com alguém com um perfil mais submisso, mais receptivo a isso. Pode acontecer de pais com filhos, filhos com pais, amigos e, inclusive, em relações homoafetivas”, esclarece Renata.

O estudante da UFF Pablo Rodrigues* (19) conheceu o ex-namorado em uma recepção de calouros e viveu um relacionamento intenso e abusivo. Segundo ele, o parceiro, Carlos*, era atencioso, fazia questão de estar presente em todos os momentos importantes e fez com que a sua vida girasse completamente em torno dele. No entanto, nove meses depois, após uma semana exaustiva de brigas constantes sem razão aparente, os dois decidiram dar um tempo como um acordo e Pablo foi manipulado a acreditar que eles reatariam o namoro futuramente, mais maduros, como Carlos havia sugerido. Mas não foi o que aconteceu. 

“Descobri traições, mesmo assim, não conseguia ver minha vida sem ele. Um ano e seis meses depois, ainda me dói ter sido tão friamente manipulado por alguém que se importou tão pouco com um sentimento que ajudou a construir em cima das suas mentiras”, lamenta Pablo, que, agora, tenta recuperar sua autoestima. 

A autoestima é um fator importante para que se reconheça os limites dentro de uma relação, para que ela não caminhe para o abismo abusivo. Quando tinha seus 15 anos, Larissa Rios* (21), que sofreu bullying por toda a adolescência, encontrou um parceiro que reforçava a falta de valor que existia dentro dela. 

“Imagine quando alguém finalmente resolve gostar da menina que sofre bullying, com depressão e autoestima baixa. Eu era jovem e insegura, acreditava que não tinha valor e, por isso, que ele era a única pessoa capaz de amar alguém como eu”, confessa.

Durante dois anos, a jovem ouvia que era insuportável, que ninguém seria capaz de aguentá-la, que era sozinha no mundo e não tinha amigos, até o dia em que decidiu dar um basta e catar seus pedaços aos poucos. Hoje, Larissa vive um relacionamento sadio e feliz com um novo parceiro, e tenta superar as marcas dessa experiência que viveu.

Parece impossível, mas não é. Assim como Larissa, Pablo, Felippa, Luiza, Nicole, Juliana e muitos outros brasileiros confirmam: é possível pôr um fim em um relacionamento abusivo procurando ajuda e ancorando-se em sua família e na própria força e autoconfiança que há dentro de você. Existe vida após o abuso.

*Os nomes das personagens foram substituidos para preservar a identidade das vítimas.

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