É de tarde. Com muito cuidado, Lara dobra a minha camisola e derrama sobre o gesto um carinho como se fosse de uma parente dela, e parente amada. Da varanda, sentada na cadeira, tomando sol de biquíni, eu a observo. Hoje é o último dia de L` o Musical. Vivi dois meses nessa cidade. O nômade da arte sempre lembra um pouco o circo. Estrear nas praças, desembarcar com nossa fábrica de ilusão dentro dos teatros de cada lugar te retratando tantas vidas sem nem as conhecer. Ô profissão mais linda, sô! Percebi que Lara também acha a dela linda: “Minha filha Kelly nasceu nos andares.” Nunca tinha pensado nisso, que expressão, nascer nos andares. “Eu quis dizer, que quando engravido, não gosto de parar de trabalhar, não, trabalho até o começo do nono mês. O maior barrigão e eu arrumando cama, e eu preparando o quarto, e eu conhecendo gente que chega e que sai. Tenho pena de deixar meus hóspedes, fico preocupada. Fico tão feliz quando boto aquela fronha novinha, passadinha, o lençol cheiroso para acolher o viajante. Eu tenho pena, o bichinho já está fora de casa. O bom é encontrar tudo limpinho para ver se lembra a casa, né? Isso se a pessoa for limpa, né? Mas eu dou sorte. Adoro o meu trabalho. E é por isso que digo que tive minha filha nos andares, porque saí daqui direto para o hospital. Agora ela tá moça, está fazendo curso de hotelaria, já fala inglês... nóssenhora se minha filha for recepcionista de hotel chique igual esse aqui, e eu ainda estiver camareira, acho que nem sei, seria a glória. E Kelly é um nome bonito para ir para um crachá, né?”
Muito bonita a Lara, aquela beleza brasileira. Onde tem tudo: preto, branco, índio, bunda, peito, cintura, brio, mistura. Estava ali com seus cinquenta e poucos anos, à minha frente, mulher como eu, amante como eu do próprio ofício. Me comove que ela exista tão soberana, tão infinita, tão perto da Paulista. Tão anônima entre os andares. Me comovem os hectares do seu coração que ela oferece aos viajantes desconhecidos. Dois meses em São Paulo, foram espetaculares: aqui comemorei o meu aniversário, na casa da Liniker, aquela divindade, aqui fizemos uma sessão especial para trans, travestis, lésbicas, aqui fiz uma aula inaugural na SP Escola de Teatro e até hoje os ares daquela galera, as emocionantes impressões daquela tarde não deixam meu coração. Aqui e agora também é a terra onde soube que meu pai havia morrido em Vitória. Foi muito triste, ouvir minha irmã dizer, através de três telefonemas, no começo da tarde de segunda: “Elisa, a pressão de papai está a 5x3, vamos interná-lo. Que estranho, ele estava tão bem ontem.” 2º à meia-noite: “Ele teve uma parada cardíaca, mas ressuscitou. Entubaram.” 3º, cinco horas da manhã, eu no aeroporto de Congonhas, depois de uma noite de terror onde o assombro da morte e sua possibilidade perto não queriam me largar nem me deixar dormir: “Elisa, papai morreu!” O chão se abriu sobre os meus pés. Congonhas, um lugar cheio de selfies, espaço público semanal onde cruzo por fãs que não hesitam em pedir fotos nunca, embora cheio, era deserto naquela hora. Manhã nova paulistana, eu chorando sem remédio. Não gritava, não fazia escândalo, mas via-se que era uma mulher em desespero, em dor, em franco desamparo. Queria tanto receber um abraço, tanto. Nunca houvera um mundo sem ele. Pai, nunca houve o mundo sem sua presença, o que será de mim? Me reconfigurarei? Por que ninguém me dava um abraço? Onde estavam meus fãs? Ao meu lado um homem lia um jornal, duro, não se movia, parecia que ele queria ser invisível para mim. Meu choro o constrangia, parecia não querer me invadir, então estabeleceu-se entre o indiferente e o discreto. Houve vários momentos em que procurei um olhar, bastava um olhar que encontrasse o meu, e eu pediria: “Me abraça, me abraça, perdi meu pai.” E me encolheria naquele colo por um segundo eterno pra mim.
Não houve. Todos com cara de que “isso não é comigo”, “eu não vou me meter”, “não quero ser invasivo”. “Cada um com sua dor”, “às vezes as pessoas não querem falar sobre...”
Enfim, mil desculpas que damos para justificar e negar no que estamos nos tornando. Há uma hora em que a humanidade terá que dar uma virada em relação à vida coletiva. É agora. Penamos por esta educação individualista: Ficar no próprio umbigo, seja através de eternas selfies, mil conexões, seja através de seus tablets que roubam por horas os nossos olhos e atenções, seja através da falta de gentileza, quesito que anda tão longe da educação dos pequenos, ou da falta de solidariedade, coisa com a qual a guerra para superar o outro, vencer o outro, pretende acabar.
Mas não era sobre isso que eu falava. Minha reflexão vagava sobre essa vida nômade, circense, que nós, artistas, vivemos, no afã de obedecer a Milton Nascimento e ir aonde o povo está. E passarmos os finais de semana longe de nossos sobrinhos, fora de muitos aniversários de amigos e amores enquanto divertimos desconhecidos. Não é uma reclamação, veja bem. Trata-se de uma consequência das escolhas. Aprendemos a nos despedir e a encontrar com nossa profissão andarilha. E aí convivemos por meses com novos nomes: Jeff, Bianca, Aurélio, Aninha, Pixote, Dagmar, Adriano, Claudio... são recepcionistas de hotel, técnicos do teatro, elenco. Tudo vira cotidiano em altas doses e ao fim da temporada se dissipará. Amizades nascem ali. Outras viveram o tempo da turnê. E tudo é ouro. O fato de não nos encontrarmos sempre, esta natureza sazonal dos nossos encontros, não tira a graça nem a força do que vivemos.
Outono do vale renascer, abril de 2018.
Aonde o povo está
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