Apreço pelo passado

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Fotografia analógica

Foto: Divulgação

Cada dia uma novidade, cada hora uma nova moda, e assim seguimos no presente descartando e substituindo tudo que existe como forma de não ficar para trás em um mundo onde a máxima “adapte-se ou morra” nunca fez tanto sentido. Quando a gente acha que chegou a algum lugar, aparece algo mais novo e lá vamos nós de novo: comprar, aprender, consumir, descartar… “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”, afirmou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman resumindo o momento presente, cheio de fluidez e em constante mudança. No entanto, mesmo na contramão do mundo, para algumas pessoas, certas coisas insistem em permanecer, principalmente quando envolvem uma paixão pessoal. Assim, em um momento onde quase tudo está se digitalizando e o virtual a cada dia se confunde mais com o real, elas cultivam hábitos analógicos, fora das tendências. Atividades que fogem da corrida frenética de ter que se reinventar o tempo todo, uma espécie de pausa para fazer aquilo que se ama. 

O estiloso cabelo black power do analista de TI Ivisson Cardoso, de 34 anos, já funciona de cara como um forte indício do seu gosto pelo “retrô”. Apaixonado por música desde criança, apesar de toda invasão da sonoridade digital, ele ainda ostenta uma coleção de aproximadamente 2 mil discos de vinil. Além de ouvir, ele ainda compartilha suas raras e privilegiadas informações dos LPs que possui através de comentários em suas redes sociais e em colunas de sites especializados.

“Desde criança, nunca fui de pedir brinquedo de presente, sempre preferi ganhar discos ou fitas cassete. Era um hobby solitário, porque eu era o único da família que gostava de ouvir rádio. Meus primos e colegas de escola não tinham interesse nisso. Mas, no decorrer da vida, os amigos que fiz, as pessoas que namorei, as parcerias e convites, todos surgiram justamente por causa da música. O curioso é quando escrevo textos sobre os discos que ouço e aparecem produtores, compositores ou os próprios artistas agradecendo, lendo, querendo trocar ideias. Isto pra mim é a maior recompensa”, revela Cardoso, que já chegou a fazer uma foto registrando os discos com os quais quer ser enterrado quando morrer.

Mais conhecido na internet como “Meu Caro Vinho”, Ivisson hoje é o que se chama de influenciador digital, focado principalmente na música popular brasileira e música infantil nacional dos anos 80. Mesmo sendo dono de um precioso acervo analógico e em meio às capas gigantes e aos graves de altíssima qualidade do vinil, ele afirma que não é avesso ao som digital. Diz, ainda, que até aprecia a facilidade do acesso que a tecnologia trouxe.

“O que me interessou foi o acesso e a independência de ouvir o que queria e a hora que eu queria. Eu sofria demais esperando tocar no rádio a minha música favorita para tentar gravar em fita k7. Com início da era do download, eu tive mais opções para descobrir e ouvir artistas novos ou os lançamentos dos artistas que eu gostava. Colecionar vinil não é difícil, dependendo do artista que se quer colecionar. Artistas que venderam milhões de cópias entre as décadas de 70 e 90 é facílimo. O difícil vai ser se você quiser ter acesso ao trabalho de alguns músicos obscuros ou que lançaram álbuns que não tiveram prestígio, ou que as tiragens foram mínimas”, ressalta o colecionador.

Para a jornalista Soraya Moté, não há nada mais divertido que reunir amigos e familiares em casa para jogarem juntos algum jogo de tabuleiro, de preferência os clássicos

Foto: Lucas Benevides

Chamamos de obsolescência o fenômeno que acontece quando um produto ou serviço deixa de ser útil, mesmo estando em estado perfeito, devido ao surgimento de algo tecnologicamente mais avançado. Ou seja, um produto se torna obsoleto quando sua tecnologia fica ultrapassada, como explica Aristides Brito, professor de pós-graduação em Marketing. No entanto, em uma sociedade pautada pelo consumo como forma de movimentar seu mercado, surge o que se chama de obsolescência planejada ou programada, um processo em que mercadorias já são fabricadas com o intuito de apresentarem rapidamente algum tipo de limitação, havendo, assim, a necessidade de troca em um curto espaço de tempo.
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“Hoje em dia, as pessoas se preocupam muito em ter a tecnologia de ponta em suas vidas. Logo que surge uma tecnologia nova, a anterior acaba desaparecendo. Muitas vezes, a indústria já planeja muitas vezes esse período de troca, chamada de obsolescência programada. Assim, acaba existindo uma pressão social para que as pessoas troquem as coisas, principalmente entre os mais jovens, que são mais sensíveis à necessidade de pertencer aos grupos”, explica Brito.

Quando perde a utilidade, muitas vezes, o produto é considerado morto. De acordo com Brito, quando a indústria deixa de produzir peças de reposição, se torna ainda mais improvável que alguém ainda queira adquirir determinado produto, que se tornam, inclusive, indesejados.

“Quando todo mundo está usando smartphone e alguém ainda usa um analógico, provavelmente logo vai se ver forçado a trocá-lo para poder usar os aplicativos de conversa com outros e não ficar de fora do seu grupo. Também não adianta ter um aparelho para o qual não existe mais a bateria para recarregar. Mas, mesmo hoje, em uma época de tanta tecnologia e obsolecências, há quem busque referência em outros tempos como identidade, ao invés de correr atrás do novo. Essas pessoas trazem de volta produtos de outra época para se fazerem representar. E é novamente os jovens que mais adoram esse tipo de coisa”, destaca Aristides.

A caligrafia carregava uma espécie de dedicação pessoal nas mensagens, que viajavam dentro de envelopes pelos correios até chegarem às mãos da pessoa que motivou a letra caprichada, desenhada no papel. Quem já recebeu uma carta escrita à mão lembra sem esforço da emoção que esse tipo de mensagem é capaz de despertar. Mas, em um contexto de facilidades, com e-mails e WhatsApps, a praticidade acabou se estabelecendo, tornando cada vez mais raro o prazer de abrir uma carta manuscrita. Uma realidade, entretanto, que uma startup pretende modificar. O Clube da Carta surgiu com a pretensão de resgatar esse amor pela escrita, entregando correspondências redigidas à mão por escritores famosos na internet aos seus assinantes.

“As pessoas se esqueceram de escrever, casais com anos de namoro não sabem identificar a letra do companheiro. Ler a caligrafia, que conta muito da personalidade de um indivíduo, é uma grande experiência. Por isso, nosso público tem apreciado cada vez mais o contato com esse tipo de texto. Temos associados de todas as idades e Estados do Brasil. Em sua grande maioria, mulheres. Mas acreditamos que todos os jovens, mesmo com toda tecnologia, podem aprender com o passado e se divertirem com antigos costumes”, afirma Thiago Valadares, idealizador do projeto Clube da Carta.

Cada vez mais envolvidas e motivadas por “likes” e “curtidas”, as pessoas amam interagir e a proposta do Clube, segundo Thiago, é que isso envolva também a troca de cartas.
“Alguns associados do Clube já têm, inclusive, escrito de volta para nossos escritores, além de haver toda interação comum ao mundo digital, por meio do Facebook e de outras redes sociais. Além disso, criamos também um evento físico para poder falar do Clube, da paixão por escrita, e trazer um lado mais humano para uma vida que hoje é tão digital”, revela Valadares.

Não foi o uso da caneta, o hábito antigo que conquistou a bibliotecária Francini Rodrigues, de 29 anos, mas, sim, o barulhinho feito pelas teclas da máquina de escrever. Sem opções de fontes, correções, cópias ou pesquisas, a prática hoje é quase tão artesanal quanto a escrita à mão, e, por isso, para os adeptos, tão fascinante quanto.

“As pessoas ficam surpresas, riem, debocham um pouco, me chamam até de excêntrica, jovem na terceira idade, saudosista e por aí vai... Mas garanto que todos amam receber cartas, poemas ou bilhetes escritos à máquina. Acham um mimo, um carinho de minha parte. Manter esse hábito de alguma forma me conecta à minha essência. Minha avó materna, uma negra imponente, tinha uma máquina de escrever vermelha e eu ficava encantada com a possibilidade de dominar aquele objeto. Acho especial a possibilidade de escolher um texto que amo, de autores que admiro, normalmente poesia, fazer um chá, ouvir Bethânia baixinho e redescobrir sentidos, pois isso tudo requer calma, tempo. Acho uma delícia”, confessa a bibliotecária.

É natural que, ao mesmo tempo em que seguem em direção ao que o momento oferece, as pessoas também busquem aquilo que as diferenciam, algo em que possam imprimir sua personalidades. Parece uma contradição, mas, da mesma forma que a sociedade segue em busca pelo ser igual e a identificação com o outro, cada um também busca ser diferente em sua forma de se expressar. O pesquisador e estilista Alexandre Bojer encontra explicação para esses fenômenos na teoria da imitação e distinção do sociólogo Hebert Spencer.

“Demonstrar personalidade é algo admirado, mas, mesmo na atualidade, as pessoas ainda precisam estar de acordo com os limites impostos pelos hábitos da sociedade. O antigo reaparece pois tendemos sempre a idealizar e romantizar o passado, da mesma forma como fazemos com nossas lembranças, selecionando apenas sentimentos bons em relação ao que se foi. Tanto que é quase um senso comum entre profissionais da moda acreditar que não se cria mais nada e que tudo é uma releitura do que já existiu”, explica o pesquisador. 

Nem games, nem séries, nem redes sociais. Quando o que está em jogo é a diversão, não existe nada melhor do que reunir os amigos em torno de um bom e velho jogo de tabuleiro. Pelo menos é o que pensa a jornalista Soraya Moté, de 30 anos. Nem mesmo os Pokémons espalhados pela vizinhança fizeram ela abandonar o hobby que aprecia desde a infância. 

“Sempre preferi receber as pessoas em casa do que sair e os jogos de tabuleiro são os melhores acompanhantes para isso. Para mim, os clássicos são os melhores, como ‘Perfil’, ‘Scotland Yard’, ‘War’, ‘Imagem e Ação’. Jogo sempre com amigos, tios e marido. Eles promovem interação, troca, diálogo, sorriso, por isso, também compro para minha filha de 6 anos, como opção à TV e ao tablet”, confessa Moté. 
Já para a museóloga Jéssica Rodriguez Garcia, de 38 anos, participar de todo processo, captura, revelação e ampliação é o que torna a prática da fotografia analógica algo tão fascinante.

“O processo analógico tem uma dinâmica muito especial e mágica. Permite pensar antes de fotografar, mas só ver o resultado quando for revelado, porque é um processo físico-químico. Fica ainda mais interessante se você levar em conta que o resultado nunca será igual ao outro, por conta das especialidades usadas naquele momento para fotografar, como o tipo de filme, o controle do ISO e a abertura do diafragma. Mas, ainda assim, acabo incorporando algumas técnicas mistas, como a digitalização do negativo, para conseguir ter a fotografia que faço também na forma digital”, destaca Jéssica.

Com as câmeras dentro da bolsa, no trajeto habitual entre casa e trabalho, Rodriguez encontra as imagens que gosta de registrar à sua maneira antiga, muitas vezes, segundo ela, driblando as dificuldades do que a obsolescência já declarou como ultrapassado.

“Por mais que as câmeras analógicas tenham ficado obsoletas, ainda é possível encontrar esses equipamentos em alguns locais específicos, como a Feira de Antiguidades da Praça XV, que acontece todos os sábados, assim como na internet ou em algumas lojas de equipamentos de segunda mão. Uma questão mais complicada para esse tipo de técnica é adquirir os filmes. Ainda dá para encontrar em algumas lojas de fotografia os itens básicos, mas quando quero usar um filme diferente, é necessário trazer do exterior pois, infelizmente, não se encontra mais no mercado brasileiro”, lamenta a fotógrafa.