Convocação à luz dos novos tempos!

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Quero reafirmar que, à luz dos novos tempos, velhas narrativas não mais passarão. Não sobreviverão provérbios retrógrados e retóricos e, menos ainda, tradicionais omissões. Quando eu disse que “coisa de preto” era subtexto de grande parte da mente nacional e, muitas vezes, das mentes do mundo, eu não estava fazendo uma hipótese. Estou falando de uma teoria filha da prática de uma experiência de existir numa sociedade racista, sendo, muitas vezes, a única negra daquele ambiente, o que me dá um lugar muito particular que eu faço questão de compartilhar. Inúmeras vezes, já ouvi e vi essa legenda gritando no olhar do meu julgador, depois de uma gargalhada, depois de uma coisa mais surpreendente, mais espontânea, de alguma coisa mais “exótica”, mais espalhafatosa, menos “comportada”. Já vi esse olhar muitas vezes: “Coisa de preto, só podia ser preto”.

O olhar sussurra pra si mesmo e eu escuto. É claro que fui criada num País multicolor, é claro que acreditei na democracia racial, mas só até entender a bipolarização flagrante entre brancos e pretos exposta como uma hemorragia atuante e invisível em todos os lugares que frequentei, sendo a única negra do colégio de freiras, sendo eu e meus irmãos os únicos negros dos clubes, das colônias de férias dos funcionários da Vale do Rio Doce, e, mais tarde, a única negra de muitos elencos. Uma espécie estranha de solidão. Então está posto o que é estrutural, o que é endêmico, o que é constituinte desta educação racista brasileira estendida a todos sob o manto da famosa “democracia racial.”

Não sou eu, é o IBGE que afirma por cálculos concretos: da multidão de desempregados que perambula pelas ruas da desesperança no País 66% são negros. Os salários dos brancos são 55% maiores que os salários dos pretos, formando, assim, enormes corredores de exclusão. Gerações e gerações de mulheres negras são multiplamente mais assassinadas que as não negras. O Brasil desperdiça seus filhos e têm especial predileção em desperdiçar as filhas e os filhos pretos. Não os reconhece. Disso tudo sabemos e nos debatemos sem compreender a profundeza da teia racista que, impingida na cabeça de cada brasileiro, produz este estrago, essa matança.

O brasileiro ignorante histórico, aquele ingênuo que cresceu sem se estarrecer com o cruel tráfico humano nos navios carniceiros negreiros, cresceu achando bonito o quadro triste e trágico da primeira missa no Brasil, o retrato da primeira missa jesuíta; o ignorantemente histórico é aquele que aprendeu a gostar daquela Tragédia: índios nus nos cantos da igreja, tomando banho de vergonha, vivendo a violenta catequização, o extermínio de uma cultura, amargando a escrota e danosa fundação da culpa sendo por ela contaminados até não mais reconhecerem o que era Liberdade. Agora, neste momento em que a República está em chamas e os poderes estão de costas para o povo, estamos por nossa conta e precisamos amadurecer como sociedade, lavar os preconceitos das escadarias da alma, uma lavagem forte, uma exigência do Axé.

É de tarde. Entro no carro, o taxista que me aguardava, com um bom desconto de 30% , me disse: “Eu esperava que você saísse por esse portão aqui”. Era o portão da esquerda que, na minha casa, é o dos fundos, e é igualzinho ao da direita, portanto, ele não podia supor, obviamente. Mas, mesmo assim, brinquei: “Não, aquela, meu senhor, é a entrada dos fundos, a entrada dos brancos.” Ele então deu um sorriso muito sem graça e eu completei: “É estranho, né, para o senhor que é branco pensar assim?”. Ele disse: “É verdade, a gente não tá acostumado a pensar isso não”. E eu: “Já pensou na televisão, numa novela, um elenco de 40 atores, 38 serem pretos e só dois brancos?” E ele: “Já pensou, tudo ao contrário?”. Incrível, “ao contrário”, ele disse. Normatizamos tanto o preconceito que achamos normal uma situação de opressão. O certo perde a referência. É ao contrário. Esse tema tem que vir para as mesas, tem que ser discutido e estar dentro da educação brasileira como conteúdo. Nem percebe-se que, dos 200 indicados na Lava Jato, todos os ladrões são brancos. Tem nenhum preto. A maioria infratores reincidentes. Mas nem se repara, nem comentamos.

É hora de lavarmos os olhos. Por isso a importância da disciplina de relações etnorraciais nas universidades, nas escolas, na formação de professores. Urge.

Toda essa minha conversa, meus queridos, é a base para uma convocação, pois chegamos a um limite. O silêncio dos não racistas brancos tem feito falta nessa luta. E está pegando mal. Vem constrangendo bons brancos. José Bonifácio deixou muitos herdeiros, tratava-se de um homem branco, abolicionista, que não admitia escravos, pagava a quem contratava os serviços, um revolucionário. Onde estão seus descendentes?

Por isso, a minha proposta no Mês da Consciência Negra é chamar a todos os não negros que reflitam publicamente sobre a educação racista que receberam. E o que vão fazer pra limpar a própria barra? Eis a minha proposta, ponham a mão neste vespeiro, contem aquilo que foi passado durante sua educação de forma sistemática. Será libertador. É urgente. Quem diz é nossa antiga gente: Se posicione, pois quem cala consente.