De quem é a conta?

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Tiago Tauil e Camilla Leal já viveram inúmeras vezes a situação de ter a conta entregue na mão dele, mesmo ela tendo pedido

Foto: Lucas Benevides

Um casal acaba de aproveitar um jantar agradável. A mulher pede a conta ao garçom, que, quando retorna à mesa com o pedido, a entrega ao homem. O constrangimento está instalado. A verdade é que casais que vão a restaurantes e bares em alguns momentos acabam passando por situações embaraçosas, sobretudo no que diz respeito aos papéis sociais de cada um. 

A professora Aline Bittencourt, que ministra a disciplina de Relacionamento com o Cliente, explica que, apesar das reivindicações históricas e da conscientização em relação ao machismo em todas as áreas, há resquícios destes comportamentos que continuam interiorizados em muitos homens (e mulheres).

“Pela cultura popular mundial, o homem é o provedor, faz parte do senso comum, e desde os primórdios é assim, ninguém perguntou se eles tinham escolha, simplesmente era imposto a eles essa condição. Consequência de séculos de educação e cultura que formavam pessoas com diferenças comportamentais e que, ainda despercebidas, interferem e muito em nosso comportamento em pleno século XXI, no furacão da liberdade de escolha”, diz. 

O casal Camilla Leal (36) e Tiago Tauil (36) já passou por algumas situações pelos “botecos da vida”, como ele brinca, se referindo ao bocado de bares que já frequentou nos oito anos em que os dois estão juntos. A advogada e o empresário contam que o que mais acontece é a conta ser entregue na mão do homem. 

“Tem ocasiões em que eu estou com a carteira na mão e ele mexendo no celular, fazendo outra coisa, e, mesmo assim, entregam para ele”, lembra Camilla, sendo completada por Tiago: “regularmente ela, por ser mulher, é ignorada na mesa pelo garçom”.

Sobre a conta, Aline diz que, quando o garçom (homem) entrega a conta para o cliente (homem) pode ser por “cavalheirismo” ou “hábito”. Dentre normas de atendimento ao público, ela acredita que a mais óbvia é prezar pelo conforto do cliente, interrompê-lo para aguardar uma resposta à pergunta: “Quem fica com a conta?”, pode ser constrangedor. O ideal é nunca entregar a conta na mão do cliente, seja ele homem ou mulher e, sim, depositar a conta sobre a mesa e deixar o cliente à vontade para manuseá-la.

Evandro Falcão e Thai Medeiros já se viram em situações de atendimento estereotipado em bares e restaurantes

Foto: Arquivo pessoal

“Olhando pelo ponto de vista do garçom, fica deselegante se ele entregar a conta para a mulher, a não ser que ela já se posicione com um desprendido ‘Hoje a conta é minha’. Da mesma forma, fica constrangedor quando a mulher se vê como coadjuvante no jantar, caso não faça sua contribuição. Há mulheres que chegam a tal desconforto, como se diminuídas diante do tal ‘macho alfa’ que a acompanha. Machismos e feminismos à parte, a sociedade hoje passa por muitas mudanças comportamentais e manter um relacionamento sustentável com o cliente é missão que desperta a necessidade de muitas habilidades”, pontua a professora.

A maquiadora Thai Medeiros (36) e seu companheiro, o engenheiro Evandro Falcão (29), comentam que, como ela bebe cerveja e come carne e o companheiro toma suco e sempre pede salada, são vítimas desse comportamento com regularidade. 

“O garçom sempre entrega os pedidos trocados, ou seja, atendimento já carregado de estereótipos porque ele sequer pergunta para quem é o quê. Simplesmente deduz”, critica Thai.

De acordo com a professora, pelo ponto de vista sexista, em qualquer lugar do mundo que você for, o tal senso comum vai te atacar novamente. 

“Creio que a cultura onde o homem paga a conta anda de mãos dadas com a mesma onde ele prova o vinho ou puxa a cadeira ou abre a porta do carro. Mas já discordo quando se ‘deduz’ que o prato mais pesado seja sempre direcionado ao cliente ‘homem’, e acrescento, ainda, que há grandes chances para ser direcionado ao cliente gordo ou ao mais bem apresentado, pois é fácil relacionar fartura a estes estereótipos. Na dúvida, aos amigos garçons, anotem no pedido uma deixa para saber qual prato pertence a qual cliente, assim você não faz feio”, salienta Aline. 

Entre os exemplos ainda negativos está o fato de o garçom nem se referir à mulher, perguntar ao homem qual será o pedido, como se ele pudesse responder por ela, como se ela não tivesse voz. Tem também o exemplo de quando a mulher entrega o seu cartão de crédito para o garçom e ele entrega a maquininha para o homem colocar a senha. 
Segundo o presidente do Polo Gastronômico de São Francisco, Bruno Zambrotti, os restaurantes do bairro têm investido muito em treinamentos e cursos de capacitação junto ao Sebrae porque o perfil do cliente mudou. E isso é muito bom. 

“O Sebrae na Mesa faz um apanhado completo desde os sócios e proprietários que tocam o negócio, passando pela parte de gerência, supervisão e pelos atendentes. Temos treinado bastante os nossos funcionários para esse perfil novo do consumidor, e isso tem tido bastante resultado. Se formos falar particularmente do nosso cliente, que tem um perfil mais jovem, é até mais fácil porque faz parte do nosso dia a dia”, pondera.
 
Já o presidente do Polo Gastronômico do Jardim Icaraí, Beto Caveari, argumenta que não pode falar por todos os estabelecimentos. Ele não acredita, no entanto, que existe esse comportamento machista, pelo menos nas casas onde comanda.

“A regra mundial é: recebe a conta quem a pede. Inclusive, somos frequentados por casais de lésbicas e não temos como ser machistas com elas. Somos estabelecimentos plurais, a gente atende todos da mesma forma”, finaliza Beto.