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A linguagem corporal começa no cérebro, no sistema límbico, responsável pelos sentimentos e emoções

Foto: Lucas Benevides

“Está tudo bem?”, “Que cara é essa?”, “Nossa, como você está radiante!”, “Não precisa dizer nada, seu rosto já diz tudo!”. Quantas vezes, só em olhar uma pessoa, já é possível identificar o que ela está sentido naquele exato momento sem precisar ouvir uma só palavra?

A forma como uma pessoa posiciona o seu corpo durante uma conversa pode indicar a sua real emoção, mesmo que ela não fale explicitamente. “Ouvi uma vez um velho africano, ao escutar e reconhecer uma canção entoada por negros no Brasil, dizer: ‘Essa é a história de irmãos que foram separados e passaram-se muitos anos até se reencontrarem. A emoção desse reencontro foi incomensurável, uma alegria tão grande que nem dá para descrever. Pois, a resposta do encantamento acontecia no corpo antes de mais nada. Talvez antes de chegar ao coração. O corpo respondia primeiro, os poros, os músculos ativavam a memória, o inconsciente coletivo e reconheciam a canção, o outro, o passado, a sua história’. Olhando pelo ângulo mais racional, como é importante abrir os olhos, respirar e perceber a importância do corpo na vida, como ele funciona diante de você, dos fatos e das emoções”, reflete a coreógrafa Sônia Destri, da Cia Urbana de Dança.

A comunicação corporal está presente desde o início da história humana e foi evoluindo ao mesmo tempo em que a humanidade evoluía, como detectou Charles Darwin sobre a origem dos hábitos de expressão corporal dos sentimentos humanos e o modo pelo qual teriam sido adquiridos gradualmente através de certos movimentos musculares, mostrando as expressões gerais e especiais que poderiam ser manifestadas em diferentes graus de intensidade. Mais tarde, comprovados pelo psicólogo americano Paul Ekman, como diz o especialista em inteligência não verbal Pedro Castro. “Paul Ekman mostra as sete expressões universais e como se apresentam: tristeza, surpresa, medo, alegria, desprezo, raiva e nojo, aponta.

Como acontece

A linguagem corporal começa no cérebro, no sistema límbico, responsável pelos sentimentos e emoções, como explica o presidente da Sociedade Brasileira de Leitura Corporal, Wandy Casalecchi. “Do cérebro descende um largo feixe nervoso através da coluna vertebral que se ramifica comandando todos os movimentos através dos nervos motores e a sensibilidade através dos nervos sensoriais. Desta forma, o sistema límbico faz com que o corpo receba suas impressões (sentimentos e emoções) quando há um pensamento ou uma emoção e regiões específicas do corpo são ativadas, seja num movimento ou numa sensação, ocasionando as expressões e movimentos, imediatamente (em milésimos de segundo), mesmo que não se perceba”, explica.

O corpo é capaz de revelar os estados emocionais básicos do ser humano e está diretamente ligado ao sistema nervoso autônomo, como explica o psicólogo clínico Bruno Barcellos. “Apesar de a pessoa estar em uma situação concreta e querer indicar determinada emoção, a sua linguagem corporal vai identificar os primeiros estados emocionais, que são naturais, a sua primeira impressão”, afirma.

Sinais comuns 

?Alguns sinais são comuns na linguagem corporal e englobam várias áreas. Os olhos são o ponto focal do corpo, o funcionamento das pupilas independe do controle consciente e é influenciado pelo grau de excitação, dilatando quando o estímulo for positivo e contraindo quando negativo. Além das pupilas, alguns sinais são comuns com os olhos como olhar para a esquerda, ao recordar sons; para a direita, ao criar falas; para baixo, ao estar triste, com vergonha ou medo; para cima, ao fugir de um conflito e coçar os olhos, ao mentir.

Existem também os movimentos feitos no pescoço ou zona respiratória, que demonstram nervosismo, estresse e ansiedade, assim como tocar em objetos. As mãos em posição de cúpula demonstram confiança e poder, enquanto abertas com os dedos afastados é sinal de alegria. Sinais como tapar a boca ou os olhos são indicadores de quem não concorda e não deseja ver determinada situação. Já os braços funcionam como uma barreira, cruzá-los sobre o peito normalmente é um bloqueio inconsciente a uma ameaça ou circunstância indesejável.  

Na dança, a linguagem corporal é o instrumento de comunicação das emoções com a audiência

Foto: Divulgação

A direção que apontam os pés e pernas revelam onde o indivíduo realmente deseja ir. Pernas afastadas mostram atitudes abertas e dominantes enquanto cruzadas revelam atitudes fechadas e inseguras. Os ombros retos e erguidos equilibrados com o pescoço transmitem poder e confiança, ao passo que os ombros côncavos e para baixo são um sinal negativo, de desânimo, desconfiança e desmotivação.

Há, ainda, os sinais pacificadores, que surgem segundos após situações de estresse, pânico, para acalmar como: tocar, esfregar, abraçar. Por exemplo: a grávida passar a mão em sua barriga em uma tentativa inconsciente de mostrar paz e tranquilidade, ao mesmo tempo em que “acaricia” seu bebê. 

Bruno Barcellos lembra que é importante não transformar o gestual em emblemas. “O significado depende do contexto em que se manifesta. Uma pessoa coçou o rosto com o dedo médio, que é ligado à agressividade e à sexualidade. Em uma relação comercial é ofensivo. Porém, em uma conversa informal, pode significar um sinal verde para relações sexuais. Gosto de interpretar os gestos observando a própria pessoa e aprendendo o seu padrão de comportamento. Quando ela muda algo, para aquilo busco um significado”, aponta.

Para o psicólogo clínico, a comunicação utiliza de todos os sentidos e algumas alterações corporais são de fácil observação, como o tremor nas mãos e nas pernas diante de uma reunião com o chefe ou uma entrevista de emprego e o balançar do pé quando ansioso ou impaciente. 

Alguns estudos, como o do professor de psicologia da Universidade da Califórnia Albert Mehrabian, indicam que mais de 50% da comunicação acontece por via não verbal (expressão facial e gestos corporais), 7% da mensagem é verbal (somente palavras), 38% são vocais (tom de voz, inflexão e outros sons). A linguagem corporal é, portanto, uma comunicação espontânea que revela como a pessoa se sente. “É importante destacar que cada pessoa é única e pode apresentar características e percepções próprias, sendo importante um olhar individualizado”, pondera Barcellos.

Essa comunicação tem relação com a forma como cada um percebe o ambiente e as pessoas ao seu redor. Como escreveu Freud em 1905, “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir fica convencido de que os mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles cujos lábios calam denunciam-se com as pontas dos dedos”, dizia o pai da psicanálise. “Uma pessoa tímida, por exemplo, está frequentemente pensando em como o outro a enxerga e, assim, em geral, possui gestos mais curtos, menos expansivos, tom da voz mais baixo e ombros curvados”, ressalta o psicólogo.

Estudos, como o do professor de psicologia da Universidade da Califórnia Albert Mehrabian, indicam que mais de 50% da comunicação acontece por via não verbal (expressão facial e gestos corporais)

Foto: Lucas Benevides

o corpo nas artes

Os atores do cinema mudo, como Charles Chaplin, foram os primeiros a usar a comunicação corporal nas telonas, técnica esta que já era usada desde a Antiguidade Clássica no teatro, desta vez tendo o artista controle sobre sua comunicação corporal. Para o diretor, ator e professor de teatro Guga Gallo, o corpo é a matéria-prima do artista.  “A mensagem do indivíduo pode ser mais clara usando o corpo, que é o porto da mente, da vontade, do desejo. O corpo reflete a maneira como é tratado e, como consequência, percebemos quando ele está na defensiva, com raiva, medo, surpresa ou felicidade”, pontua o ator, que acredita que a comunicação corporal revela traços psicológicos. “Em uma turma de teatro que ministro, percebi que uma aluna estava cada dia mais inibida. Comecei a fazer movimentos para surpreendê-la e, aos poucos, percebi que o movimento dela era de defesa e medo, chamei sua responsável e falei que a menina parecia sofrer por algo. Por fim, descobrimos que ela sofria violência moral dentro de casa pelo seu padrasto”.

Na música, a comunicação não verbal é também crucial, uma vez que o cantor necessita da postura para melhor executar suas canções. Na dança, em que o corpo é o instrumento do artista, é a fala dele com o mundo, a linguagem corporal assume importância máxima, como sugere Sonia Destri. “O ser humano se move e seu movimento é uma linguagem completa e complexa. O que interessa é o tesouro da memória emocional e corporal. Antes da técnica ou da dança, o corpo é o instrumento que fala com o mundo. Quando o corpo fala, sem conceito ou preconceito, é bem-vindo, é reconhecido e acalentado, pois é honesto, inteiro, presente. A identidade e individualidade fazem com que a dança seja parte do conjunto, contudo, cada indivíduo é tão importante quanto o conjunto e, assim sendo, seu corpo o representa”, filosofa a coreógrafa.

O bailarino e coreógrafo da Companhia Nimo Gleidson Vigne, que, entre outros trabalhos, atuou na abertura das Olimpíadas do Rio em 2016, vê o corpo como meio de comunicação da dança.“Quanto mais consciência e domínio o bailarino tem do seu corpo, melhor será feita essa comunicação. O fato do bailarino quase nunca usar a fala como veículo de comunicação em cena faz com que ele necessite ter muita consciência de seu corpo para poder passar para o público a mensagem que ele pretende através da sua linguagem corporal em cena, neste caso os gestos ganham ritmo e sintonia”, ressalta.

Simples movimentos na face denunciam sentimentos e estados de espírito, como mostra o ator Guga Gallo. De acordo com ele, corpo é o porto da mente, da vontade, do desejo, além de refletir a maneira como é tratado

Foto: Lucas Benevides

No cotidiano

A linguagem corporal é observada em todas as áreas da vida, inclusive na busca por um emprego ou em um relacionamento, onde os detalhes fazem diferença, como chama atenção o mestre em psicopedagogia Tufic Derzi. “A forma como nos expressamos faz ter sucesso ou fracasso. Como se diz ‘não existe uma segunda chance de causar uma boa primeira impressão’. Quando se apresentar, aperte a mão com segurança (nem mão mole, nem mão de quimono) para passar confiança. Olhe nos olhos e pronuncie sua marca (nome e sobrenome). Ande ereto demonstrando confiança e competência. Quando alguém sofre, é fácil notar pelo andar cifótico da pessoa. Você já viu alguém de bom humor olhando para baixo? Certamente não! Pense sempre positivamente, e terá sucesso”, aconselha.

A linguagem corporal humaniza, ainda, a relação com o paciente durante o seu tratamento, revela o fisioterapeuta Fabio Marcelo. “O fisioterapeuta deve estar atento à linguagem corporal do paciente, reproduzida pela comunicação não verbal. Desta forma, poderá complementar, contrariar ou mesmo substituir a racionalização da linguagem verbal”, resume.

Já na avaliação do paciente, a linguagem corporal desempenha papel importante, aponta o fisioterapeuta Renato Jose Maria. “Percebemos sinais de que o paciente pode apresentar determinada patologia e, assim, podemos ter noção se o tratamento está dando resultados”, pontua.

A linguagem que seduz

Olhar semicerrado, toques na pessoa  interessada e até se fingir de atrapalhado, olhar penetrante, mordida de lábios, cruzada de pernas, não resta dúvida: estamos diante de uma cena de sedução, momento em que a linguagem não verbal se faz presente e desempenha papel fundamental na conquista do outro. A comunicação corporal é uma questão de inteligência e estratégia, como resume Sergio Senna. “Use a linguagem a seu favor. Ter acesso às emoções das pessoas antes delas perceberem o que estão sentindo é como ter uma pequena máquina do tempo que lhe dá cinco minutos de vantagem. Observar a formação de uma determinada emoção, as expressões faciais, nos indica os estados emocionais das pessoas numa situação concreta e você ganha um tempinho enquanto a pessoa não tem consciência para intervir naquele contexto. Um tempo para pensar o que fazer para mudar o contexto e ter sucesso”, finaliza.