Cada vez que me impressiono com um novo avanço tecnológico na cozinha, mais gosto daquelas pessoas que mantêm a tradição passando adiante as receitas e fazeres de bisas, avós e mães, claro, tudo isso no masculino igualmente. Gosto de imaginar um futuro longe do meu alcance, no qual alguém que virá, diga: meu bisa fazia assim o que aprendeu com a mãe! E que prazer amplificado é o de poder compartilhar, através desse meio, tão tradicional, gestos de minha infância, das mãos da minha mãe, que me motivam a imprimir, também eu, uma pequena marca.
Repensando a Açorda
De origem árabe, a açorda (mais tradicional no Alentejo) é basicamente água fervida, despejada numa tigela onde estão socados, sal, alho e coentros, finalizada com a adição de pedaços de pão. Uma sopa de sobrevivente. Isso ficou no passado, onde um ovo que se escalfava na água fervente já era alguma distinção. Em tempos mais próximos, distantes da escassez de outrora, o caldo já é o do cozimento de algum rico acompanhamento, peixe, bacalhau (que aqui se distingue pelo processo de salga e secagem), e mesmo o camarão, hoje o queridinho das açordas modernas. Agora vem o desdobramento da história: já tivemos fusion nos anos 80, responsável por muitas abominações; molecular (termo impreciso) nos 90, brilhante nas mãos de alguns gênios, mas desastrosa em versões genéricas; e chegamos ao século 21 com um interessante olhar para o produto local, para o cuidado na produção do ingrediente em sua origem. Buscamos um descarrego da gourmetização insidiosa e alguma reconstrução depois de tanta terra arrasada. Minha mãe sempre teve à disposição os peixes pescados nos mergulhos de meu pai e por ela mesma, premiada pescadora de linha de fundo, muitas vezes vi belos exemplares em grandes tabuleiros no forno de casa. Temperar o peixe com sal, limão, alho, coentros e regá-lo no azeite, parece-me tão natural como escovar os dentes pela manhã, o detalhe especial estava e sempre estará nas boas rodelas de pão nas quais se deitava o peixe no tabuleiro. O pão encharcado de sabor, no azeite e sucos provenientes do peixe, em alguns pontos tostado e crocante, em outros empapado como uma açorda, inspirou a montagem do prato que traz no DNA nítida presença da sopa alentejana. Umedeço o pão com uma boa taça de vinho branco e abuso do azeite, desfio o peixe depois de assado, fervo uma água com as espinhas, cabeça e pele depois de retirada toda a carne, coado, esse caldo servirá para escalfar um ou dois ovos caipiras. Mistura-se o pão recuperado do tabuleiro com o ovo escalfado, vai aí essa açorda no fundo do prato, peixe limpo e coentros finalizam. Pelo amor de Deus, não comam isso sem um copo de vinho branco bem refrescado! Quem avisa amigo é!
A família no prato
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