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No ateliê, o designer Guilherme Sass também atua como marceneiro, desenvolvendo e executando peças premiadas como a poltrona catamarã

Foto: Lucas Benevides

Basta uma olhada rápida por sites e livrarias para constatar o que hoje é considerado como a “nova fórmula do sucesso”. Criatividade, uma velha conhecida, que se tornou agora a grande habilidade do momento, e, por isso, também a mais desejada. Tudo bem que ser criativo sempre teve seu valor, mas, no contexto atual, seja para tomada de decisões, busca por soluções ou como matéria-prima diferencial, propostas inovadoras parecem garantir a sobrevivência das empresas nesse cenário cheio de incertezas. E se você acha que não nasceu artista e que isso não é para você, especialistas garantem que existem várias alternativas para se tornar uma pessoa criativa, porém, todas essas possibilidades passam pelo autoconhecimento.

Fora do ambiente dos criativos tradicionais, a criatividade também está sendo utilizada no mundo dos negócios através de metodologias como o design thinking, entre outras, que se propõem pensar os projetos de uma empresa utilizando a inovação, explica Ricardo Cunha Lima, coordenador no Istituto Europeo di Design (IED Rio).

“A ideia é produzir soluções diferentes, ampliando as possibilidades, o que vai na contramão do tradicional pensamento pragmático e focado desses ambientes. O foco agora vai surgindo em diversas etapas criativas de trabalho. É o pensamento do designer trazido para as empresas”, explica Ricardo.

Criativos são uma parcela importante da cultura, muitas vezes mal compreendida. Por isso, segundo Cunha, é importante que esse tipo de potencial esteja passando por um momento de valorização social.

“Muitas vezes, em muitas famílias, um jovem criativo é incompreendido e criticado. Mas agora isso começa a mudar. No campo das mídias sociais, por exemplo, o trabalho criativo pode chamar muito mais atenção e agregar muito mais valor para um cliente. Isso porque um criativo garante uma presença digital de uma forma muito mais envolvente para empresas, marcas, artistas, entre outros. Ele consegue não ser chato”, ressalta Ricardo.  

O ser criativo que se fala no contexto atual significa ser adaptável a mudanças, como explica Bernardo Cabral, gestor da escola Perestroika no Rio de Janeiro. 

“Quanto mais confortável você estiver para abrir mão do seu planejamento, das suas certezas e correr atrás de uma solução nunca antes implementada, mais preparado você vai estar para os desafios dessa sociedade em transição. Mas é importante separar dois conceitos que costumam ser confundidos: ser criativo e ter um dom. Dom é uma facilidade natural que uma pessoa tem para alguma área, como desenhar, fazer música, entre outros. Já criatividade é a capacidade de promover novas abordagens”, explica Cabral.

De repente, o mundo corporativo percebeu que a habilidade criativa pode contribuir para os negócios. Assim, o talento para inovação deixou de ter espaço apenas no mundo das artes e ganhou destaque também nos currículos. Ensinando e administrando com criatividade, para Cabral, a capacidade de inovar também é uma qualidade adquirida de fora para dentro.

A Perestroika, no Rio, é uma escola de desenvolvimento das potencialidades criativas de cada um

Foto: Lucas Benevides

“Não adianta você querer ser mais criativo fazendo todos os dias o mesmo trajeto de casa para o trabalho, sentando no mesmo lugar para trabalhar, em frente ao mesmo computador, com os mesmos programas e pessoas. Para estimular sua criatividade, você precisa aumentar seu repertório, viver mais experiências, ter contato com outras culturas, ver coisas diferentes. Aprender a olhar para as coisas de outra forma. Lembra quando você era criança e via animais nas nuvens? É basicamente isso”, ressalta Bernardo.

A palavra criatividade tem origem no latim creare, e significa a capacidade de criar, produzir ou inventar coisas novas. Em algumas definições, criatividade é uma capacidade e competência responsável pelo desenvolvimento de ideias, ou ainda, potencial de criação e capacidade de conceber inovações.

Moda, arquitetura e design são setores que tradicionalmente fazem parte da indústria criativa. No entanto, desde a década de 1990, setores como tecnologia da informação, comunicação e software, impulsionados pelo surgimento da internet, passaram a ter um impacto significativo na produção criativa ao mesmo tempo em que não se encaixavam em sua definição até então. Hoje, a economia criativa já compreende quatro grandes áreas de atuação: consumo, cultura, mídias e tecnologia. 

“A economia criativa é composta por um conjunto de setores que tem nas atividades criativas, artísticas e intelectuais a base da geração de valor econômico. Inclui áreas tão diferentes como teatro, artesanato, publicidade, pesquisa e desenvolvimento, design, patrimônio, entre outras. O crescimento desse setor acontece principalmente por conta da percepção de que a atividade artística e intelectual é abundante e pode servir como inovação nas empresas. Por isso mesmo, setores econômicos tradicionais têm apostado na criatividade para inovar”, afirma Elizete Ignácio, diretora da Clave de Fá Inteligência em Pesquisa.

No entanto, para garantir sustentabilidade, criatividade e interesse do público precisam ser conciliados, afirma a consultora de moda Luciana Tostes, 38 anos. À frente da própria marca junto com o marido, Rodrigo Teixeira, 38 anos, ela explica que inspiração tem que entrar para a linha de produção.
“Todas as vezes que criamos uma coleção nova, sempre pesquisamos antes com nossas clientes, filtramos as tendências e apresentamos para elas da forma que estamos pensando em fazer. Aí conseguimos o equilíbrio. Muitas vezes, ficamos sem inspiração com toda a rapidez do mercado da moda. Paramos e voltamos ao foco quando percebemos que não precisamos correr como todo o mundo, entendemos bem o nosso tempo”, explica Tostes.

À frente da própria marca junto com o marido, Rodrigo Teixeira, Luciana Tostes acredita que inspiração tem que entrar para a linha de produção

Foto: Lucas Benevides

Apaixonada por moda, Luciana começou vendendo roupas para uma multimarca até que seu expertise a transformou em consultora para as clientes. Mas a vontade de avançar cresceu ainda mais quando uma amiga sugeriu que ela criasse a própria marca. Como se não bastasse, os talentos de Marcos se somaram aos sonhos da esposa. Assim, há anos, a criatividade se tornou para eles um negócio de família.

“Ela sempre me chamou para comprar esse sonho junto, até que uma hora resolvi acreditar. Observava o trabalho das confecções quando ia buscar as peças e achei que podia cortar. Depois, me aventurei a fazer a modelagem, que foi um passo muito importante porque essa é a parte mais cara da fabricação de roupas. Fui me especializando e, hoje, todo o processo de criação está em nossas mãos”, comemora o novo modelista. 

Vender criatividade é algo especial, apaixonante, é fazer as pessoas verem o quanto uma ideia pode mudar a vida de um produto, um serviço ou até das pessoas, explica Gustavo Bastos, diretor de criação da agência 11:21 Simplicidade Criativa.

“É incrível ver o quanto uma ideia criativa pode ser o caminho para construir uma marca, vender mais, criar fãs, engajar as pessoas, fazer com que elas se interessem por seus valores e por sua história. Como consequência, tem-se uma marca mais forte e consumidores que se tornam admiradores. Quando você chega nas pessoas através de ideias criativas, elas se abrem e deixam a marca entrar no coração delas. Entretanto, para comprar uma ideia, ainda mais quando ela é inovadora e ousada, as pessoas têm que acreditar no subjetivo, e nem sempre você consegue que elas tenham a mesma visão que você”, explica Bastos.

Quando criança, Guilherme Sass, 28, pensava e construía os próprios brinquedos, carrinhos, estilingues e espadas, seguindo uma tradição de artífice que vinha do pai e do avô. Hoje, mais do que uma memória, a madeira ainda é sua principal fonte de inspiração e criação. Ao descobrir sua grande paixão pelo design de mobiliário, os brinquedos deram lugar às escrivaninhas, cadeiras, mesas e poltronas.

“A materialização de uma ideia é uma prazer indescritível. Às vezes, o processo criativo esbarra em vários problemas até chegar no produto final. Mas esse caminho é sempre recompensado quando vemos que aquilo realmente é importante para alguém, que é um objeto de afeto”, revela o designer.
Assim, em 2009, Guilherme se associa à Oficina Ethos e começa a tirar seus projetos do papel. No ateliê, ele também vai para bancadas de marceneiro, desenvolvendo e executando peças premiadas como a poltrona catamarã, a gangorra momento, cadeira curupira e a escrivaninha poética.

O Núcleo de Pesquisa – Ensino, Criatividade e Cuidado em Saúde e Enfermagem da UFF realiza experimentações estéticas e pesquisas sobre a criatividade na saúde, através da perspectiva da sociopoética

Foto: Divulgação

“Acredito que o ser humano tem uma necessidade muito grande do inesperado, da surpresa e da sensação de ter ou conhecer um produto que possa somar na sua qualidade de vida. De algo que proporcione momentos e sensações bacanas. Faço objetos tão simples, mas que proporcionam sorrisos ou facilidades que deixam a vida muito mais prazerosa”, declara Sass.

Também sempre foi parte da produção criativa a capacidade de contar boas histórias. No mercado de hoje não é diferente. Seja para fazer palestras memoráveis como as de Steve Jobs, escrever séries para o Netflix, falar da sua especialidade ou livro no TED, ou criar roteiros para canais do YouTube, transmitir pensamentos, ideias e fatos através de uma narrativa que fascina. O chamado storytelling é uma habilidade que vai de encontro a muitas oportunidades nesse momento. 

“Mas não é simples transformar uma boa história num bom produto. A cumplicidade, o respeito a quem te assiste, o entendimento do seu mercado, o cuidado com cada etapa da produção são muito importantes. Recentemente, o público estava manifestando sua revolta com o filme ‘Death Note’ do Netflix. Sendo que ‘Death Note’ é uma saga fascinante, que apaixona seus fãs. Assisti ao filme, uma comédia trash, muito ruim mesmo. Foi um jeito que não funcionou pra contar uma mesma história, entende?”, ressalta a roteirista Ingrid Zavarezzi. 
Com tanto burburinho em torno da criatividade, há quem diga que essa é uma habilidade que pode ser aprendida. Em toda a parte, cursos e workshops afirmam que ser criativo não é um privilégio inato ou um dom, mas, sim, uma capacidade a ser desenvolvida. 

“Criar é ter a capacidade de propor novas alternativas. Uma pessoa pode ser criativa exercendo qualquer atividade, seja música ou finanças, criando coisas novas ou incrementando o que já existe. Por isso, sempre começo meus cursos com um trabalho de autoconhecimento para, só depois, ensinar ferramentas de desenvolvimento criativo”, afirma Bia Ferreira, que ministra um curso de criatividade e inovação no Polo Criativo no Rio de Janeiro.

Hoje, muitos estudos têm buscado conhecer e medir aspectos da criatividade, defendendo a ideia de que há pessoas com predisposição para comportamentos criativos, como afirma Cláudia Mara Tavares, professora de enfermagem psiquiátrica na UFF.

“Algumas qualidades têm sido identificadas como próprias da personalidade criativa, como, por exemplo: curiosidade, interesse por múltiplos assuntos, autoconfiança, independência de pensamento e a imaginação. O problema é que o ensino em nossa sociedade é normatizador e isso mata a criatividade, estimulando apenas a competitividade entre as pessoas, sufocando nossos desejos, bloqueando nossa imaginação”, revela.

Na vanguarda das pesquisas sobre o tema, Cláudia é uma das fundadoras do Núcleo de Pesquisa – Ensino, Criatividade e Cuidado em Saúde e Enfermagem (NUPECCSE), criado em 1995 com o objetivo de realizar experimentações estéticas e pesquisas sobre a criatividade na saúde, através da perspectiva da sociopoética, método criado pelo pesquisador francês Jaques Gaultier, inspirado em pensadores como Gilles Deleuze, Augusto Boal, Paulo Freire, entre outros.

“Se as qualidades criativas estão presentes espontaneamente em alguns, elas podem e devem ser estimuladas em todos”, conclui a pesquisadora.