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Rosália Lemos, Arinilta Ribeiro, Rosangela Gomes, Gisele Nunes, Cecília Ruiz, Alcinea Rodrigues e Teule Lemos: militantes de Niterói

Foto: Lucas Benevides

Quando se fala em feminismo negro, a primeira pergunta que nos vem à cabeça é: Por que negro? Ou ainda: Para que dividir a luta das mulheres? A resposta está na desigualdade social. Historicamente, brancos e negros nunca lutaram por seus direitos em pé de igualdade e com as mulheres não seria diferente. Para elas, as opressões sociais se somam e, apesar de uma luta secular, no Brasil, a violência contra elas aumentou nos últimos anos. Ainda assim, as mulheres negras avançam a cada dia em busca de suas oportunidades e encontraram na união todas as referências positivas que lhes são negadas, desde sempre, na sociedade.  

Um caso entre muitos. Após ser constatado que, nas últimas 13 edições, apenas uma mulher, Clarice Lispector, havia sido homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a organização do evento este ano decidiu prestar homenagem à poetisa Ana Cristina Cesar. Além disso, a presença de homens na programação, que já chegou, inclusive, a representar 85% dos convidados, dividiu as mesas esse ano, com 44% de mulheres. Ao todo, 17 escritoras foram convidadas, fazendo com que a edição chegasse a ser chamada de “Flip das mulheres”. No entanto, a inexistência de negras não impediu que, mais uma vez, a feira fosse alvo de críticas.

A campanha “Vista Nossa Palavra Flip 2016” – idealizada por Giovana Xavier e Janete Santos Ribeiro, do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – esteve à frente das manifestações de indignação pela ausência de autoras negras no evento.

“A Flip convidou 17 escritoras, mas nenhuma era negra. Nós, ativistas, consideramos isso inadmissível. Por isso, mandamos uma carta aberta à organização criticando essa postura. A curadoria da Flip reconheceu que errou, mas disse que o evento contava com a participação de negros. Consideramos essa atitude ainda mais grave, por eles desconsiderarem que estávamos nos referindo especificamente à presença de escritoras negras na feira”, explica.

Da ação pontual na feira de 2016 surgiu um movimento que pretende ser permanente: “Vista a nossa palavra”, que tem como questão principal dar visibilidade às escritoras negras.
“É uma campanha virtual para dar visibilidade a essas mulheres, pois o que aconteceu na Flip não é uma questão rara e nem pontual”, afirma Xavier.

Ações em defesa da mulher negra como a que aconteceu na Flip têm registros mais antigos, quando, ainda no século XIX, a americana Ida B. Wells-Barnett foi sócia e editora de dois jornais da comunidade negra, onde tratou de vários temas, como a violência e o linchamento contra negros. Ela também foi demitida de seu emprego como professora por suas ideias consideradas incendiárias – entre elas a de que negros eram seres humanos que possuíam direitos. Junto com ex-escravos e abolicionistas, Ida viajou pelo país divulgando a causa. Em relação aos direitos da mulher, Ida teve uma atuação igualmente corajosa e notável. No entanto, comentários racistas de sufragistas brancas em relação a homens negros puseram um fim à união com a jornalista. Em 1930, ela concorreu a um posto no Senado estadual de Illinois, mas não ganhou. Morreu no ano seguinte, 1931, de doença renal, tornando-se um símbolo do movimento feminista negro.

O desencontro com o feminismo branco persistiu através dos tempos e, na contemporaneidade, mais ou menos por volta do final da década de 70, a mulher negra voltou a se sentir desqualificada em suas especificidades nos encontros feministas que eclodiam na época.

“O feminismo negro se faz necessário quando a mulher negra detecta as opressões que incidem especificamente sobre ela, que são de cor, gênero, raça, classe social e, no caso da lésbica, de orientação sexual. O feminismo branco foi colocado em xeque por não atender à bandeira de luta da mulher negra. Enquanto a feminista branca lutava para ser inserida no mercado de trabalho, a mulher negra já trabalhava há muito tempo, como doméstica ou babás na casa dessas brancas”, explica Rosália Lemos, doutorando em política social da Universidade Federal Fluminense e fundadora do grupo de feminismo negro em Niterói, o “E´lélékò - gênero, desenvolvimento e cidadania”, foi fundado em 1996.

A condição social é uma questão que separa essas mulheres, segundo Rosália, que afirma que a principal bandeira da mulher negra no Brasil hoje é lutar pela criação de políticas públicas de segurança e saúde. 

“Enquanto a branca lutava por direitos, desqualificava o trabalho daquela que estava na cozinha dela. Então, nossas questões desde sempre apontavam em direções diferentes. Eu mesma já fui babá e era remunerada com meio salário. Nosso ponto de partida está sempre em desvantagem. Se você for investigar quem é o mais pobre dos pobres vai chegar na mulher negra. Vale lembrar também que, hoje, 61% da violência e morte obstetrícia acontecem com mulheres negras e a maior incidência de câncer de colo de útero também acontece com essa população, muito pela falta de prevenção, uma vez que elas evitam procurar tratamento médico por serem maltratadas”, denuncia Lemos.

O Brasil ocupa a posição de 5º país no ranking global de homicídios de mulheres, entre 83 países analisados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Uma situação é ainda mais alarmante em relação às mulheres negras. Entre 2003 e 2013, houve um aumento de 54,2% no total de assassinatos desse grupo étnico, saltando de 1.864 para 2.875. Aproximadamente mil mortes a mais em 10 anos. Os números são do estudo “Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil”, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da ONU Mulheres. O estudo também mostra que a violência sem homicídios de negras cresceu 190,9% na década analisada. De 22,9%, em 2003, para 66,7%. Em contraposição, houve recuo de 9,8% nos crimes envolvendo mulheres brancas, que caiu de 1.747 para 1.576.

Em um contexto de adversidades, o feminismo negro tem feito diferença para muitas mulheres como a recepcionista niteroiense Giselle Nunes, de 36 anos, que, desde adolescência, pôde contar com apoio do movimento, que interferiu de forma muito positiva nos rumos de sua vida.

“Fui aluna do E´lélékò, onde aprendi informática, tive reforço de português e matemática, mas, principalmente, assisti palestras de mulheres negras que tiveram êxito em suas vidas e me serviram de exemplo para lutar”, lembra Giselle.

Estar consciente das opressões que o sistema oferece e contar com apoio mútuo de um grupo com as mesmas reivindicações contribuem para uma melhora na percepção tanto da vida, quanto de si mesma, afirma a recepcionista.

“Eu achava que tinha que ser discreta, me anular, não tinha coragem de usar um turbante nem de me enfeitar. Hoje, tenho orgulho da minha negritude, da minha beleza. O movimento me fez encontrar a minha autoestima. Como já foi falado, a vida é difícil para a mulher negra desde sempre, mas é preciso que fique claro que, ainda assim, e com muita luta, a gente consegue ocupar o nosso espaço”, finaliza.