O problema dos brancos Parte 1

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Como um monstro com mil tentáculos e uma perniciosa tumoração espalhada no corpo cultural do Brasil e na maioria dos países do mundo, o racismo recrudesce, cresce e se reproduz apesar dos avanços de cada nação ou de cada organização civil. Como cabe a um sistema, ou seja, se vale de um conjunto de funcionamentos, tal qual o machismo, o racismo, tão cruel quanto eficiente, campeia, e ainda não sabemos como deter suas letalidades: o crescente assassinato de mulheres; o crescente assassinato de negros. Nos dois sistemas a gente observa a profundidade de seus alcances quando vemos as próprias vítimas assumirem as razões dos seus algozes. Muitas mulheres ainda confundem com demonstração de amor o controle opressor do parceiro sobre seus passos, o ciúme excessivo, o domínio dele sobre suas decisões íntimas e pessoais. Da mesma maneira, ainda há muitos negros, embora cada vez menos, cuja esfacelada autoestima não autoriza a ocuparem seu bom lugar de direito na sociedade, e esses mesmos acham que ser branco é ser mais bonito e melhor.

Fiz a comparação e, pensando bem, o que une as mulheres de quaisquer etnias e os negros na história da opressão é que os dois, reservadas as proporções, por muitos séculos, viveram como escravos. A mulher como moeda de troca, valorada por dotes, prometida como uma mercadoria, violada sexualmente e frequentemente assassinada pelo seu dono; e o negro viveu o escândalo do holocausto crudelíssimo que o mundo não chama de holocausto, mesmo tendo sido sangrenta e mortal a grande temporada (quatro séculos) de tortura e maus tratos por uma soberania branca. Uma merda. Estamos num vale de lágrimas para citar Adélia Prado. A normalidade da injustiça sistêmica diária em todas as áreas sobre o povo negro é a nossa mais perigosa ação diária. Neste momento, muitas crianças estão sendo educadas racistamente. Graças à exclusão constante, por conteúdo, a maioria das crianças negras está em escola pública e, de maneira geral, a frágil qualidade do ensino que recebe se equipara a comida de pior qualidade que muitos patrões oferecem aos seus empregados, prolongando para os dias de hoje os velhos e injustíssimos ensinamentos da casa grande e da senzala. 

A ideia de uma democracia racial no Brasil é uma das ilusões mais perniciosas de nossa violenta idiossincrasia. Por anos acreditou-se que não havia racismo aqui, mas nossa história é testemunha da triste verdade. Afinal, está na nossa origem a dizimação sem precedentes de índios e negros. Como não entendemos isso direito, há quem ainda admire aquele quadro dramático da primeira missa no Brasil. Aquilo é de dar dó. Imagine os portugueses catequizando um pajé!? É surreal. Mas, não sabemos nossa gênese direito. Vivemos aos trancos e barrancos engolindo narrativas tendenciosas escritas pelos que desfrutam até hoje dos privilégios da concentração de poder e de renda. Muitos “mestiços” brasileiros empinam o nariz para citar sua ascendência paterna ou materna: “Minha vó veio da Sicília, meu avô era de Mônaco” e na parte em que deveriam também dizer: “Minha avó veio do Congo, nação que foi no passado, até a chegada de sua violenta colonização, uma referência em diplomacia internacional!” Pois em lugar disso, dizem: “Por parte de mãe tenho um pezinho na cozinha”. A negação da história real das nações que foram escravizadas gerou a perversa distorção na qual interpretamos, sem querer, que toda a África nasceu na senzala. E isso só aponta para um imaginário onde devemos atuar através da educação e da arte. Como não se vê como racista, a classe dominante frequenta igrejas, templos, e outras unidades de “evolução espiritual” e seguem sendo racistas diariamente sem que isso se configure como “pecado”.

Tivemos, enfim, a regulamentação do trabalho da empregada doméstica e houve quem bradasse contra. Para muitas madames é mais do que natural uma senhora despertar às 6 horas da manhã para despachar os filhos dos patrões que vão para a universidade, preparar o café de toda família, seguir o dia inteiro emendando tarefas e, às 11 da noite, ainda estar acordada para botar a janta do chefe quando chega. Para muitas madames é um acinte pagar hora extra por isso; afinal, o quarto sem janela em que ela mora, praticamente, é de graça. Não nos iludamos, são as lições da casa grande, por isso não se estranha .

Cabe ao cinema fazer aquele filme épico, tipo “Em nome da rosa”, ou “Em nome do Pai”, mostrando toda a saga do tráfico de escravos, a mortandade e a loucura dos navios negreiros, toda cultura da tentativa do extermínio dessa cultura. Cabe à escola. Cabe ao teatro. Não conhecemos nossa história, não visitamos as Áfricas, tudo que sabemos ainda vem das três únicas páginas, incluindo grandes espaços de todas ilustrações onde os livros didáticos contam “toda” a história do negro no Brasil. Ao mesmo tempo, a educação formal, somada às outras artes, tem que dar conta de desconstruir esta sólida utopia do eurocentrismo que mora na cabeça do que se entende como povo civilizado e autoriza tantos horrores.