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Andre Vaz da Rocha é adepto da prática do “sonho lúcido”, que defende ser possível atingir, durante o sonho, níveis de consciência que permitam que o indivíduo tenha controle sobre aquilo que sonha

Foto: Lucas Benevides

Mais antiga que qualquer teoria formulada é a busca do homem para entender o intrigante mundo de sensações e imagens com que entramos em contato enquanto dormimos, os sonhos. Afinal, o que eles revelam? Que influência exercem sobre nossas vidas? Na antiguidade, o homem costumava atribuir aos sonhos interpretações e significados variados, na maioria das vezes cercados de misticismo ou de uma espécie de função premonitória. Com o passar do tempo, o fenômeno deixou de ser interesse apenas de magos e sacerdotes e se tornou objeto de pesquisas também para a ciência. Hoje, cada área de interesse tem sua própria explicação para o fenômeno. No entanto, parece que, a cada mistério desvendado, o fascínio se torna ainda maior quando o assunto é sonho.

Os egípcios foram os primeiros a deixar registrados exemplos de interpretação dos sonhos, que, na época, eram considerados uma forma de comunicação com o divino. Mesmo depois, entre filósofos gregos como Aristóteles e Hipócrates, quando os sonhos passaram a ser entendidos como algo natural do organismo, as interpretações dos sonhos ainda mantinham um caráter de premonição, visão que persiste até hoje através de religiões, crenças e relatos como os da universitária Camila Borges (à esquerda), de 24 anos. “É comum para mim ter sonhos premonitórios. Um vez, acordei assustada e meus pais me perguntaram o que tinha acontecido. Disse que tinha sonhado que minha irmã estava em uma espécie de jogo e, de repente, começava a correr por causa de uma confusão. No mesmo dia à tarde, ela me ligou dizendo que tinha sido assaltada em frente ao Maracanã e meu pai tinha ido ajudar. Assim como esse, vários foram os episódios em que sonhei e, em um curto período de tempo, as coisas se concretizaram”, revela Camila.

A precisão dos sonhos da estudante ganhou a atenção e respeito de toda a família, que, agora, fica atenta toda vez que o fenômeno acontece. Entretanto, mesmo recorrentes, as premonições não se tornaram um peso para a jovem, que afirma lidar de maneira natural com essa peculiaridade. “Certa vez, sonhei que tinha de repente entrado em trabalho de parto e eu mesma retirava o bebê de mim e o pegava no colo. No dia seguinte, soube que uma amiga muito próxima, que não sabia que estava grávida, tinha vivido exatamente essa situação. Também me despedi em sonho do meu avô que estava internado no exato momento em que recebi a notícia do falecimento pelo telefone. Nunca sei quando é uma premonição, estou tentando entender, mas isso não interfere na minha vida”, afirma.

Segundo a psicanalista Fernanda Pimentel, desejos aparecem deformados e enigmáticos nos sonhos

Foto: Lucas Benevides

Da crença para a ciência, o mais expressivo estudo da modernidade também é considerado o marco inicial da psicanálise. O livro “A interpretação dos sonhos” é de 1900, mas contém correspondências do médico austríaco Sigmund Freud que datam desde 1882. Foi através de um caso publicado como “Emy Von N.” que Freud começa a considerar a possibilidade de se utilizar dos sonhos como material para os tratamentos. “Com essa teoria, Freud mostra que existe uma parcela de nosso funcionamento que permanece inconsciente. Que os sonhos são realizações de desejos, que reaparecem deformados e enigmáticos em decorrência de uma censura. Esse efeito de deformação onírica, por sua vez, tem o objetivo de nos proteger do aspecto que consideramos ameaçadores nesses desejos. O resultado disso termina quase sempre nos causando estranhamento”, explica a psicanalista e doutoranda em pesquisa e clínica em psicanálise pela Uerj Fernanda Pimentel.

O livro, que ocupa dois volumes da coleção do médico e foi revisado a cada edição, tem o objetivo de alcançar justamente esses desejos inconscientes que surgem irreconhecíveis através dos sonhos. Nele, Freud apresenta uma técnica para acessar esse conteúdo inconsciente, através de um manejo clínico. “Ele sabia que o livro era revolucionário, tanto que o material estava pronto desde 1899, mas Freud só quis publicá-lo na virada do século. Ele chega a afirmar que esta foi a mais valiosa de todas as suas descobertas. E, ainda hoje, os sonhos continuam sendo uma ferramenta fundamental na psicanálise. Curiosamente, muitos analisandos afirmam não se lembrar de seus sonhos ao acordar, mas, quando são convidados a relatar esse conteúdo em análise, começam a se recordar com mais frequência”, revela Pimentel. 

É do médico austríaco Sigmund Freud, o pai da psicanálise, o mais expressivo estudo sobre os sonhos

Foto: Reprodução

Os desdobramentos das ideias foram surgindo. A princípio um promissor discípulo de Freud, o médico suíço Carl Gustav Jung acabou se afastando de sua influência e desenvolvendo suas próprias teorias. Jung ampliou os conceitos estudados por Freud, buscando conhecimentos na mitologia, religião, alquimia, além do conteúdo individual de cada pessoa, conforme explica a escritora e psicóloga junguiana Sandra Santos. “Para Jung, os sonhos são processos psíquicos que, quando interpretados de maneira cuidadosa e clara, levam ao autoconhecimento e ao que ele chamou de ‘individuação’, uma forma de tornar-se um indivíduo indivisível ou consciente. Ou seja, uma maneira do inconsciente dialogar com a pessoa. Ao interpretar os sonhos, Jung acredita ser possível tocar e alterar a estrutura dos complexos, ou seja, para ele, os sonhos podem ser usados a nosso favor”, destaca Santos.  

De acordo com diversas áreas da medicina, o sono possui cinco estágios, os estágios 1, 2, 3, 4 e REM (sigla para Rapid Eye Movement ou Movimento Rápido dos Olhos). Assim, se tudo der certo, passamos por cada etapa até atingir o sono REM, em um ciclo que recomeça, em média, a cada 100 minutos. É justamente na fase REM onde maior parte dos sonhos ocorre, uma etapa também conhecida por pesquisadores como de fundamental importância para a criação de memórias de longo prazo. “É desta fase que as pessoas se lembram dos sonhos quando estão acordadas. Em outras fases, não há lembrança de sonhos. O sono REM predomina no fim da noite, por isso lembramos mais dos sonhos nesse horário. Enquanto função nesse processo, os sonhos consolidam a memória e as emoções, tendo papel especial na organização do aprendizado motor”, enfatiza a neurologista, especialista em medicina do sono, Lucila Bizari Fernandes do Prado.

Mas se os sonhos são manifestações do inconsciente, é possível vivenciá-los de maneira consciente? Para os praticantes da técnica conhecida como “sonhos lúcidos”, sim. “Em um sonho comum, vivenciamos a experiência como se fosse um filme, por vezes bizarro e sem sentido. Nossa participação é limitada sem perceber que tudo por ali é apenas um sonho. No caso dos sonhos lúcidos, conseguimos perceber a diferença do estado desperto e a consciência é mantida sem acordarmos. Tudo isso utilizando algumas técnicas simples”, explica o palestrante Márlon Jatahy, criador do site sonhoslucidos.com.

Bastante influenciado pelas imagens oníricas, Ale Maia e Pádua tem um quadro seu (acima) exposto no Freud Museum, em Londres

Foto: Lucas Benevides

O sonho lúcido começa quando a pessoa percebe que está sonhando, dentro do sonho. Uma habilidade que, se desenvolvida, permite que a pessoa realize coisas incríveis, afirma o praticante da técnica, o produtor cultural Andre Vaz da Rocha, de 24 anos. “O que pode ser utilizado para cura, autoconhecimento, praticar técnicas profissionais e criativas e muitas outras possibilidades, produtivas ou não. Conheci a técnica em um filme chamado ‘Waking Life’ e achei fascinante. Procurei informações sobre o tema e comecei a fazer umas práticas diárias”, revela Vaz.

Para sonhar lucidamente existem diversas técnicas que têm como objetivo basicamente aprender a perceber que se está sonhando e lembrar do sonho depois que acorda, afirma o produtor cultural. “Nesse treino, é importante se acostumar com o questionamento da realidade, como olhar o relógio ou se perguntar a si mesmo se está sonhando, porque, desta forma, as chances de fazer a mesma checagem no sonho aumentam. Você ficará lúcido. No início, quando me percebia em um sonho, criava asas e voava. Com o tempo, fui tentando outras coisas, como flutuar, fazer surgir uma pessoa ou mudar completamente o ambiente. Além disso, dá para perceber que os sentidos funcionam quase como na realidade, então, para um sonhador lúcido, tudo que passa no sonho é percebido como se ele tivesse vivido mesmo”, ressalta o praticante da técnica.

Outra maneira secular do homem tentar interpretar os sonhos é através da arte. Nesse contexto, a expressão do universo onírico encontra sua expressão máxima no movimento chamado Surrealismo, que teve início em Paris na década de 1920. Os artistas desse movimento acreditavam que a arte deveria se libertar das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência para poder expressar o inconsciente, a imaginação e os sonhos. O catalão Salvador Dali é considerado um dos principais artistas do movimento, uma inspiração que se renova através dos tempos. Mais recentemente, no Brasil, no ano de 1992, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, através dos carnavalescos Renato Lage e Lilian Rabello, levou para a Avenida o enredo “Sonhar não custa nada ou quase nada”, que lhe rendeu o título de vice-campeão na categoria especial e um dos sambas-enredo mais populares de toda a história do carnaval.

Andre Vaz da Rocha é adepto da prática do “sonho lúcido”, que defende ser possível atingir, durante o sonho, níveis de consciência que permitam que o indivíduo tenha controle sobre aquilo que sonha

Foto: Lucas Benevides
 

Para o artista plástico niteroiense Ale Maia e Pádua, de 34 anos, os sonhos são inerentes ao processo de criação e concepção de qualquer artista. Assim, em uma de suas obras, encomendada pela escola Práxis Lacaniana de Niterói, Ale utilizou como inspiração os relatos de Sergej Pankejeff, um famoso paciente de Sigmund Freud, que narra um sonho que tivera ainda criança, na Rússia, no qual lobos brancos posicionados em cima de uma árvore o observavam dormir.

Durante a apresentação da obra, a administração do Freud Museum London na Inglaterra se interessou em publicar a arte, que, em seguida, ganhou outros espaços importantes como a Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft, em Berlim, e a Contemporary Freudian Society, em Nova Iorque.“Lembro que, uma vez, fui a uma exposição chamada justamente ‘Le Rêve’ (‘O Sonho’, em francês) no Museu Cantini, na França, inteiramente dedicada ao universo do sonho e que contava com nomes consagrados da história da arte como Picasso, Goya, Victor Hugo, Rodin, Kubin, Vallotton, entre outros. Ali, pude observar que os sonhos e a criação resultam em linguagem em constante sintonia. E que a possibilidade de se inspirar através de um sonho é possível para qualquer pessoa. Isso porque, enquanto dormimos, presenciamos nossos maiores desejos, alegrias, medos e angústias, mas também descobrimos novos caminhos e nos renovamos para um próximo dia”, conclui Maia e Pádua. ???