Quando meu filho Juliano tinha menos de 12 anos, eu acho, soube no colégio, através das aulas, que um dia prenderam Caetano Veloso. Ficou chocado. Chegou em casa dizendo: “Mãe, como assim? Ele já foi mau?” O pequeno não compreendia como aquele cara, cuja música era admirada unanimemente por todos da nossa família, incluindo seus avós, tios e, em especial, eu e o pai, que chegamos a pensar nesse nome Caetano como primeira opção para o do nosso filho, aquele artista cuja música tocava em nossa casa por todo o tempo poderia ter sido preso, por quê?
Tentei explicar com mais clareza aquilo que é realmente indefensável e difícil de explicar. Eu era uma criança quando houve o golpe militar. Lembro do meu pai, ele que adorava livros, queimando livros no quintal. Eu, espreitando escondida pela fresta da porta. Era noite. Minha mãe nervosa, meu pai falava do grupo dos 11, de Brizola, do socialismo. Lembro da foto do Edson Luiz, um estudante assassinado pela ditadura porque bradava por um país livre. Lembro do espanto, do horror, do medo que grassava em todas as áreas onde o pensamento e a criatividade eram cruelmente impedidos de circular.
Havia nas escolas latim, artes, era uma outra realidade a educação pública brasileira até então. A entrada dos militares no poder, a tomada, a força bruta deste poder, o golpe militar por 20 anos fez barbaridades.Não interessava a estes um povo inteligente, informado, indagador. E a educação começou a empobrecer. E o seu treinamento para com os civis pensantes e discordantes era de extermínio. Torturou, matou, desapareceu, estuprou, e quem sobreviveu teve de o fazer na marra, apesar daquelas cicatrizes psicológicas, as da alma.
Casos conhecidos como o de Zuzu Angel, que foi assassinada porque fez muito barulho lutando para descobrir o paradeiro do filho e os seus assassinos, se proliferaram país afora, e há muitas Zuzus e muitos filhos anônimos cujos desfechos de vida a Comissão da Verdade e o grupo Tortura Nunca Mais, atuais iniciativas brasileiras, ainda não desvendaram.
Não é segredo para ninguém que a administração militar atrasou o país durante anos e os vilões eram os artistas, os professores, os sociólogos, religiosos, estudantes e pensadores. Eu mesma, já na faculdade, sofri junto com o meu grupo teatral a censura que Brasília fazia de todos os textos apresentados no país. Todas as peças que produzíamos, e no nosso caso eram criações coletivas, deveriam ser submetidas aos censores federais. Estes brutamontes despreparadíssimos, em geral, saiam cortando ao Deus dará qualquer palavra que ousasse criticar o governo ou incitar a liberdade de pensamento. A imprensa era escancaradamente policiada, controlada, e pagava com a vida aquele jornalista que ousasse pensar por si e alto.
Foi esse pensamento totalitarista inspirado no fascismo é que prendeu nosso Caetano e exilou o poeta Ferreira Gullar e mais uma rica lista de intelectuais brasileiros. Por tudo isso, meu povo, me estarrece que meio século depois se queira ressuscitar a ditadura. Como assim? Não há outra explicação a não ser a ignorância histórica. Numa ditadura ninguém pode falar o que pensa, e nem caberiam essas atrocidades que todo tipo de pessoa tem falado nas redes sociais, caso essas desagradassem o governo vigente.
Depois dessas manifestações prós, um possível delirante novo golpe militar, ficou-me a certeza de que não sabem do que estão falando. Começamos a nos acostumar com esta vida democrática. (...) Não foi fácil e nem está sendo fácil para o país sua restauração depois de anos de embotamento e escuridão. (...) Custamos muito a voltar a amar direito as cores da bandeira nacional, tamanha vergonha e o atraso que se abateram sobre ela. Nos acontecimentos políticos recentes do país, no pleno exercício dessa democracia, conhecemos a insatisfação revelada, as exigências de um povo que está cada vez mais compreendendo o seu poder sobre o mandato dos seus representantes, e também temos conhecido a saída debaixo do pano, de forças conservadoras que trazem em seu bojo o exercício da homofobia, do racismo, da discriminação ostensiva com os pobres, nordestinos, etc.
Nesse caldeirão divergente, torço para que ideias convençam outras ideias, que o diálogo permaneça sobre a força, que os argumentos ganhem do comportamento da violência que desrespeita os que divergem. Tenho ouvido loucuras, insanidades.
Seus filhos precisam saber que Caetano foi preso um dia, Chico Buarque interrogado, que Fernanda Montenegro foi para as ruas com mais 100 artistas pedindo que ninguém morresse mais pela língua e pela voz. Portanto, sejamos homens e mulheres de nossa época. Libertas quae seras tamen.
Só se combate uma ideia com outra ideia melhor
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