A verdade nua

Revista
Tpografia
  • Mínimo Pequeno Médio Grande Gigante
  • Fonte Padrão Helvetica Segoe Georgia Times

“O nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli, é um dos mais importantes quadros que retratam a nudez e símbolo de um ideal estético do Renascimento

Foto: Divulgação

Em uma das pinturas mais famosas do Renascimento, “O Nascimento de Vênus”, Sandro Botticelli representa a deusa do amor saindo de uma concha e escondendo seu corpo nu com os braços e seu cabelo. A imagem talvez seja uma das representações da nudez mais conhecidas da história da arte, que, desde os primórdios, tem se debruçado sobre o tema do corpo nu, significando-o e ressignificando-o conforme a evolução do tempo.

Dependendo do contexto histórico e da própria cultura em que está inserido, o corpo nu pode ganhar inúmeras leituras. Símbolo da inocência para uns, materialização do desejo para outros, desenho da libertação máxima, não importa: é impossível passar incólume diante da nudez, talvez o maior símbolo de todas as questões íntimas, políticas e filosóficas da cultura. 

No mundo de hoje, a arte contemporânea explora a nudez como um dos principais símbolos da liberdade, sendo tema de performances, trabalhos fotográficos e exposições artísticas. O uso do corpo como expressão artística – agora transbordado dos museus e galerias – se tornou tema de discussões entre os artistas e de polêmicas na sociedade. Para o designer, fotógrafo e naturista Guilherme Altmayer, o tabu da nudez está associada com o lugar em que ela é exposta.

“Acredito que a principal razão para o nu se tornar um tabu está em grande parte no seu deslocamento de espaços onde ele é tolerado para espaços onde provoca desconforto. O público que frequenta museus e galerias está disposto a aceitar o nu como parte do contexto artístico.

No momento em que o nu é deslocado para fora da instituição de arte e visto por um público mais abrangente, ele pode provocar estranhamento, pois está se comunicando com pessoas não habituadas a este tipo de expressão e que podem entender o nu como um disparador do próprio desejo”, argumenta Altmayer.

O designer estudou o papel e as representações do corpo na cidade e também é responsável por um projeto que estuda o legado de Luz Del Fuego e o movimento naturista trazido por ela no País, entre os anos 1940 e 1950. A dançarina, atriz, escritora e feminista causava polêmica por suas apresentações que exploravam a nudez. Em 1948, lançou sua biografia, “A Verdade Nua”, fortemente censurada por boa parte dos conservadores da época.

Após a Revolução Sexual, nos anos 1960, o nu se tornou mainstream e ganhou uma outra significação. A nudez, antes tão atrelada a um ideal estético a ser alcançado, agora passa a ser celebrada na sua diversidade pelos artistas. O reconhecimento dessa variedade de formatos e diferentes tipos de corpos foi o que motivou o publicitário e artista Andy Massena a criar o “Ellas By Massena”, um conjunto de pinturas que representa mulheres de diferentes tamanhos e tons de pele.

Massena começou a divulgar seus desenhos nas redes sociais e, lá mesmo, conseguia novas modelos para posar. Na exposição, ele reúne 30 das mais de 100 obras e depoimentos de suas modelos ao redor do mundo sobre a perspectiva que elas têm de beleza. Em vez de buscar uma idealização, ele prefere retratar a pluralidade.

“Esse projeto começou a partir do questionamento dos padrões de beleza e a nudez foi um artifício usado para chamar a atenção. Serve para as pessoas refletirem as mudanças do corpo com o tempo e também valorizarem outras características que não sejam apenas o porte físico”, defende Massena.

O fotógrafo Fernando Schlaepfer é também o objeto de sua lente no projeto “365 nus”

Fotos: Divulgação/ Fernando Schlaepfer

O nu artístico das modelos de Massena gerou polêmica. Em algumas reportagens, suas obras receberam uma enxurrada de críticas pelos corpos ali expostos: mulheres gordas, negras, magras. Os tipos já não são mais a Vênus, que carregava em si um modelo de mulher, são pessoas reais. Se por um lado há um estranhamento, por outro há a felicidade e o alívio pelo reconhecimento daqueles corpos. Apesar das críticas a seu trabalho nos comentários das redes sociais, os elogios felizmente são mais presentes do que a crítica.

O fotógrafo Fernando Schlaepfer, por sua vez, é criador do projeto “365 nus”, que pretende postar nas redes sociais um nu artístico ao longo dos 365 dias do ano. As fotos misturam os modelos com paisagens naturais ou dentro do próprio ambiente de casa. Inicialmente, as pessoas que posavam para Schlaepfer eram conhecidos e parentes do fotógrafo, mas, com o passar do tempo e o reconhecimento de suas fotos, famosos como a atriz Priscilla Marinho, a apresentadora Mari Moon e a youtuber Nátaly Neri aderiram ao projeto. Para Fernando, o nu ainda tem um impacto na sociedade.

“Temos que naturalizar o corpo nu, porque um corpo é apenas um corpo. O nu ainda choca e é diariamente censurado. Só pra se ter uma ideia, enquanto o homem pode ficar sem camisa, o mamilo feminino é censurado. A sociedade ainda é hipócrita”, acredita.

Os niteroienses Artur e Uyl Figueiredo são alguns dos musos inspiradores de Fernando no projeto. Para os irmãos gêmeos, o ato de posar para as lentes de Schlaepfer é visto pelos dois como empoderamento.

“Já tinha posado uma vez para o Fernando e a segunda foi com meu irmão, Uyl. O nú artístico trouxe pra mim uma confiança em relação ao meu corpo. O trabalho consegue representar a diversidade dos corpos e isso me motivou a fazer parte”, enfatiza Artur.

A Sociedade Fluminense de Fotografia, no Centro de Niterói, oferece o workshop de fotografia em nu. No curso anual de curta duração, os alunos aprendem a importância de se explorar essa arte e desmistificar o tabu em torno de fotografar a nudez. 

Após três anos, o workshop coordenado por Letícia Vinhas volta no segundo semestre, dessa vez com a colaboração do fotógrafo Paulinho Muniz. Para Letícia, o mais interessante de trabalhar com a nudez é romper com o preconceito de que ela não pode ser arte.

“O objetivo do curso é transformar a visão que as pessoas têm em relação à fotografia de nu artístico. O workshop é voltado para a criação de um outro olhar, que dê significado àquele corpo nu”, teoriza.

A censura dos corpos

No último dia 17, durante um evento no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC), a estudante Cecília Carvalhaes realizou uma performance artística em que ficava nua e se depilava ao ar livre. O acontecimento gerou uma discussão sobre os limites da nudez na arte e até que ponto esses corpos devem ser censurados. 

Ainda nas redes sociais, o projeto “365 nus” foi denunciado por conter nudez e Fernando ficou alguns dias sem sua página pessoal. Para Altmayer, o fato dos brasileiros conviverem com a nudez em algumas festas e na mídia não significa que eles sejam mais tolerantes.

“O nível de incômodo dependerá do quanto a pessoa está confortável com o próprio corpo e o quanto as regras morais que a cercam a influenciam. Assim, despir o corpo é transgredir a norma do vestir. No Brasil, o fato de aceitarmos o nu durante o carnaval não significa que ele será aceito em todos os contextos”, argumenta.

Em uma sociedade que oscila entre a livre circulação de alguns corpos e a censura de outros, a maior questão fica em torno do papel dessa nudez para enfrentar ou reforçar essa dicotomia. Para Massena, a nudez exposta em seu trabalho serve para romper com antigos modelos de representação.

“A nudez em meu trabalho serve para quebrar os padrões da sociedade, do corpo, e a forma como ele é representado vai mudando com o tempo”, enfatiza.

A pornografia, por exemplo, trouxe uma forte carga erótica para o corpo despido, que ganhou o significado de “corpo-objeto”. Prova disso é a infinidade de revistas masculinas e o tamanho da indústria pornô, uma consequência da sexualização desse corpo a serviço do prazer de um outro. 

Fernando afirma que a percepção de cada um em relação à nudez é diferenciada, mas que as revistas e filmes adultos ajudaram, de certa forma, a criar uma idealização em torno desses corpos.

“Existe na sociedade um falso moralismo que vem de uma sociedade patriarcal. Todo nu que não seja para o deleite individual é ofensivo. A pornografia talvez seja culpada pelo estereótipo dos corpos nus”, conclui o fotógrafo.

A estudante de Produção Cultural Yasmin Luchessi, que posou para a capa de OFLU REVISTA, acredita que, quando escapa da sexualização, o nu feminino choca mais do que o masculino.

“Vivemos em uma sociedade extremamente machista e patriarcal. O nu feminino só é bem aceito quando a mulher é fetichizada e vista como objeto pro prazer masculino, o que vemos de forma recorrente na publicidade e na indústria cinematográfica, por exemplo. Já quando esse nu se dá em forma de empoderamento e libertação do corpo, ele é julgado e hostilizado”, conclui Yasmin.
?
Essencial na história da arte, o nu contemporâneo carrega outros significados que escapam a uma simplificação. Falar dele é falar da própria sociedade que, ao mesmo tempo, o idealiza e o rechaça. O imacula e o deseja. O significado do corpo nu é tão contraditório quanto o olhar de quem o enxerga. 

A verdade nua

A verdade nua

Revista
Tpografia
  • Mínimo Pequeno Médio Grande Gigante
  • Fonte Padrão Helvetica Segoe Georgia Times

“O nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli, é um dos mais importantes quadros que retratam a nudez e símbolo de um ideal estético do Renascimento

Foto: Divulgação

Em uma das pinturas mais famosas do Renascimento, “O Nascimento de Vênus”, Sandro Botticelli representa a deusa do amor saindo de uma concha e escondendo seu corpo nu com os braços e seu cabelo. A imagem talvez seja uma das representações da nudez mais conhecidas da história da arte, que, desde os primórdios, tem se debruçado sobre o tema do corpo nu, significando-o e ressignificando-o conforme a evolução do tempo.

Dependendo do contexto histórico e da própria cultura em que está inserido, o corpo nu pode ganhar inúmeras leituras. Símbolo da inocência para uns, materialização do desejo para outros, desenho da libertação máxima, não importa: é impossível passar incólume diante da nudez, talvez o maior símbolo de todas as questões íntimas, políticas e filosóficas da cultura. 

No mundo de hoje, a arte contemporânea explora a nudez como um dos principais símbolos da liberdade, sendo tema de performances, trabalhos fotográficos e exposições artísticas. O uso do corpo como expressão artística – agora transbordado dos museus e galerias – se tornou tema de discussões entre os artistas e de polêmicas na sociedade. Para o designer, fotógrafo e naturista Guilherme Altmayer, o tabu da nudez está associada com o lugar em que ela é exposta.

“Acredito que a principal razão para o nu se tornar um tabu está em grande parte no seu deslocamento de espaços onde ele é tolerado para espaços onde provoca desconforto. O público que frequenta museus e galerias está disposto a aceitar o nu como parte do contexto artístico.

No momento em que o nu é deslocado para fora da instituição de arte e visto por um público mais abrangente, ele pode provocar estranhamento, pois está se comunicando com pessoas não habituadas a este tipo de expressão e que podem entender o nu como um disparador do próprio desejo”, argumenta Altmayer.

O designer estudou o papel e as representações do corpo na cidade e também é responsável por um projeto que estuda o legado de Luz Del Fuego e o movimento naturista trazido por ela no País, entre os anos 1940 e 1950. A dançarina, atriz, escritora e feminista causava polêmica por suas apresentações que exploravam a nudez. Em 1948, lançou sua biografia, “A Verdade Nua”, fortemente censurada por boa parte dos conservadores da época.

Após a Revolução Sexual, nos anos 1960, o nu se tornou mainstream e ganhou uma outra significação. A nudez, antes tão atrelada a um ideal estético a ser alcançado, agora passa a ser celebrada na sua diversidade pelos artistas. O reconhecimento dessa variedade de formatos e diferentes tipos de corpos foi o que motivou o publicitário e artista Andy Massena a criar o “Ellas By Massena”, um conjunto de pinturas que representa mulheres de diferentes tamanhos e tons de pele.

Massena começou a divulgar seus desenhos nas redes sociais e, lá mesmo, conseguia novas modelos para posar. Na exposição, ele reúne 30 das mais de 100 obras e depoimentos de suas modelos ao redor do mundo sobre a perspectiva que elas têm de beleza. Em vez de buscar uma idealização, ele prefere retratar a pluralidade.

“Esse projeto começou a partir do questionamento dos padrões de beleza e a nudez foi um artifício usado para chamar a atenção. Serve para as pessoas refletirem as mudanças do corpo com o tempo e também valorizarem outras características que não sejam apenas o porte físico”, defende Massena.

O fotógrafo Fernando Schlaepfer é também o objeto de sua lente no projeto “365 nus”

Fotos: Divulgação/ Fernando Schlaepfer

O nu artístico das modelos de Massena gerou polêmica. Em algumas reportagens, suas obras receberam uma enxurrada de críticas pelos corpos ali expostos: mulheres gordas, negras, magras. Os tipos já não são mais a Vênus, que carregava em si um modelo de mulher, são pessoas reais. Se por um lado há um estranhamento, por outro há a felicidade e o alívio pelo reconhecimento daqueles corpos. Apesar das críticas a seu trabalho nos comentários das redes sociais, os elogios felizmente são mais presentes do que a crítica.

O fotógrafo Fernando Schlaepfer, por sua vez, é criador do projeto “365 nus”, que pretende postar nas redes sociais um nu artístico ao longo dos 365 dias do ano. As fotos misturam os modelos com paisagens naturais ou dentro do próprio ambiente de casa. Inicialmente, as pessoas que posavam para Schlaepfer eram conhecidos e parentes do fotógrafo, mas, com o passar do tempo e o reconhecimento de suas fotos, famosos como a atriz Priscilla Marinho, a apresentadora Mari Moon e a youtuber Nátaly Neri aderiram ao projeto. Para Fernando, o nu ainda tem um impacto na sociedade.

“Temos que naturalizar o corpo nu, porque um corpo é apenas um corpo. O nu ainda choca e é diariamente censurado. Só pra se ter uma ideia, enquanto o homem pode ficar sem camisa, o mamilo feminino é censurado. A sociedade ainda é hipócrita”, acredita.

Os niteroienses Artur e Uyl Figueiredo são alguns dos musos inspiradores de Fernando no projeto. Para os irmãos gêmeos, o ato de posar para as lentes de Schlaepfer é visto pelos dois como empoderamento.

“Já tinha posado uma vez para o Fernando e a segunda foi com meu irmão, Uyl. O nú artístico trouxe pra mim uma confiança em relação ao meu corpo. O trabalho consegue representar a diversidade dos corpos e isso me motivou a fazer parte”, enfatiza Artur.

A Sociedade Fluminense de Fotografia, no Centro de Niterói, oferece o workshop de fotografia em nu. No curso anual de curta duração, os alunos aprendem a importância de se explorar essa arte e desmistificar o tabu em torno de fotografar a nudez. 

Após três anos, o workshop coordenado por Letícia Vinhas volta no segundo semestre, dessa vez com a colaboração do fotógrafo Paulinho Muniz. Para Letícia, o mais interessante de trabalhar com a nudez é romper com o preconceito de que ela não pode ser arte.

“O objetivo do curso é transformar a visão que as pessoas têm em relação à fotografia de nu artístico. O workshop é voltado para a criação de um outro olhar, que dê significado àquele corpo nu”, teoriza.

A censura dos corpos

No último dia 17, durante um evento no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC), a estudante Cecília Carvalhaes realizou uma performance artística em que ficava nua e se depilava ao ar livre. O acontecimento gerou uma discussão sobre os limites da nudez na arte e até que ponto esses corpos devem ser censurados. 

Ainda nas redes sociais, o projeto “365 nus” foi denunciado por conter nudez e Fernando ficou alguns dias sem sua página pessoal. Para Altmayer, o fato dos brasileiros conviverem com a nudez em algumas festas e na mídia não significa que eles sejam mais tolerantes.

“O nível de incômodo dependerá do quanto a pessoa está confortável com o próprio corpo e o quanto as regras morais que a cercam a influenciam. Assim, despir o corpo é transgredir a norma do vestir. No Brasil, o fato de aceitarmos o nu durante o carnaval não significa que ele será aceito em todos os contextos”, argumenta.

Em uma sociedade que oscila entre a livre circulação de alguns corpos e a censura de outros, a maior questão fica em torno do papel dessa nudez para enfrentar ou reforçar essa dicotomia. Para Massena, a nudez exposta em seu trabalho serve para romper com antigos modelos de representação.

“A nudez em meu trabalho serve para quebrar os padrões da sociedade, do corpo, e a forma como ele é representado vai mudando com o tempo”, enfatiza.

A pornografia, por exemplo, trouxe uma forte carga erótica para o corpo despido, que ganhou o significado de “corpo-objeto”. Prova disso é a infinidade de revistas masculinas e o tamanho da indústria pornô, uma consequência da sexualização desse corpo a serviço do prazer de um outro. 

Fernando afirma que a percepção de cada um em relação à nudez é diferenciada, mas que as revistas e filmes adultos ajudaram, de certa forma, a criar uma idealização em torno desses corpos.

“Existe na sociedade um falso moralismo que vem de uma sociedade patriarcal. Todo nu que não seja para o deleite individual é ofensivo. A pornografia talvez seja culpada pelo estereótipo dos corpos nus”, conclui o fotógrafo.

A estudante de Produção Cultural Yasmin Luchessi, que posou para a capa de OFLU REVISTA, acredita que, quando escapa da sexualização, o nu feminino choca mais do que o masculino.

“Vivemos em uma sociedade extremamente machista e patriarcal. O nu feminino só é bem aceito quando a mulher é fetichizada e vista como objeto pro prazer masculino, o que vemos de forma recorrente na publicidade e na indústria cinematográfica, por exemplo. Já quando esse nu se dá em forma de empoderamento e libertação do corpo, ele é julgado e hostilizado”, conclui Yasmin.
?
Essencial na história da arte, o nu contemporâneo carrega outros significados que escapam a uma simplificação. Falar dele é falar da própria sociedade que, ao mesmo tempo, o idealiza e o rechaça. O imacula e o deseja. O significado do corpo nu é tão contraditório quanto o olhar de quem o enxerga.