Você não ama tanto assim

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Precisamos falar sobre o amor. Todo mundo sabe. Escolhemos as frases mais bonitas, somos desconstruídos, usamos nossos cabelos coloridos. Destilamos nosso entendimento sobre política, relacionamentos e futebol em todo canto. Mas, veja bem, circulamos só com nossos, nada de intrusos. Não queremos que ninguém nos tire da nossa redoma, do nosso infinito particular. Dizemos aos sete ventos que quanto mais amor melhor.

Mas é mentira. Triste desfazer esse sonho perfeito assim, nesse clima já de quase verão. Mas a gente não se importa com pobre, periférico, preto, favelado. A gente não se importa com uma penca de criança vivendo ali naquela esquina onde a morte grita. Grita alto. E é todo dia.  A gente não se importa com quem não sabe ler, escrever, interpretar. A gente debocha de que não tem cognição. A gente não se preocupa em falar uma língua que o outro entenda. Queremos só a desconstrução pela desconstrução. Mas seria bom que parássemos de encenar só um minuto. Não precisa ser mais do que isso.  Agora, fale aqui baixinho. Cá entre nós: até onde vai o seu amor? Ele passa do túnel? 

A gente diz que ama a tempo e a hora, mas não fala da solidão da mulher negra, por exemplo. A gente mal sabe o que é isso. O que é isso? Talvez a gente procure na internet, vivemos numa era maravilhosa. E aí, por termos muito amor para dar, vamos sentar e a dar nossa opinião. Falaremos daqui de cima, do nosso lugar de privilégio, e vamos questionar se isso existe mesmo. Se não é só mais uma besteira que o século XXI trouxe.  Vamos comentar na nossa mesa da classe média e vamos debater entre a gente. Não é necessário ouvir uma mulher negra. Quem são elas? Só elas podem falar? Claro que não. Vamos silenciar todas. Em massa, se possível. Não queremos mexer nesse vespeiro de emoções. Rola um medo terrível de ir muito longe e descobrir que temos um lado desconstruído e um outro que goza de uma penca de privilégio, mas não consegue assumir. É difícil estar do lado de quem oprime. Sobretudo para quem faz tudo com as melhores das intenções. Não há segredo nisso. E esse é só um dos muitos conflitos que ficam nas periferias das urgências.

A gente não vai falar mais de amor do mesmo jeito. Não é isso? Não de uma forma tão simplificada, como se a gente nascesse pronto para amar. A gente não nasce. A gente é feito para amar o que é bonito. O que é fácil, simples, óbvio. Estamos dispostos a entender o que é a urgência do outro que parece tão distante? Ouvimos mais do que falamos? Eu olho para essas manifestações públicas que clamam pelo amor. E a gente usa como se fosse um viral. Mas não estamos prontos, nunca estaremos prontos. A gente foi feito para não se importar. Tudo colabora para que a gente não se importe, desde os algoritmos do Facebook até os recortes geográficos e sociais que a gente finge que não vê para não estragar nosso sonho de mundo melhor. 

Sobreviveremos a esse golpe em pleno domingo. Mantenham a calma. Não é porque estou aqui dizendo que nenhum de nós é tão bom quanto se diz ser, que a gente não seja legal de vez em quando. Não é nada disso. É só um alerta. Se você quiser seguir a vida sem pensar até onde você está disponível para o amor, não existe laço. Você é livre. Mas sugiro que a gente seja menos hipócrita, simplista, leviano.  Que a gente entenda que se importar é ouvir. É entender o que se passa ali, é reconhecer nossos privilégios e fazer o possível para não financiar máquinas de opressão. Quando a gente não souber nada do assunto, a gente não vai falar nada. A gente vai aprender a ouvir sem ficar pensando como rebater o outro. A gente vai parar de dizer que não é racista, não é machista, não é homofóbico, não é misógino. A gente vai sacar que não tem vivência de um monte de coisa. Que a gente fala besteira demais e acha que o mundo encaretou. Vai ter patrulha, sim. A gente vai entender que não se faz graça com a cicatriz dos outros. A gente vai pensar que aqui, por descuido ou por exceção, não vai ser o inimigo que vai decidir quando ofendeu. Do mais, amem. Mas amem sem tanto alarde, que esse é só o começo.